Eu devia ter uns quatro anos de idade, mas a história foi tão comentada na família durante todos esses anos que deixou de ser lembrança para se tornar retrato. Dessas histórias que de tão presentes, deixam de parecer que aconteceram ontem e se tornam finalmente passado…

Lembro que um dos meus tios chegou na casa de minha mãe dizendo que meu bisavô não parava de perguntar sobre mim. Lembro de ter ouvido e continuado brincando no chão da sala. Algumas horas depois, minha mãe me chamou dizendo…

– Vamos lá na padaria ligar para o seu bisavô?
– Vamos!

Como eu adorava falar no telefone e o orelhão da padaria era o único no bairro, fui correndo. Não precisou me chamar duas vezes. Subi a ladeira deixando minha mãe para trás, voando pela calçada para não levar bronca por causa de carro.

Paramos na padaria para comprar as fichas telefônicas, mas o cheiro da fornada de sonhos fez com que nos lambuzássemos de creme antes da ligação. Passava um conhecido, outro, mais outro, ela papeava, eu lambia os dedos… Adorava cheiro de pão quente, recheio de baunilha, mas o que eu queria mesmo era ouvir as conversas das pessoas no orelhão. A boca cheia de sonho, os olhos caçando verdades, as orelhas em pé. Uma gula que engolia tudo o que via, ouvia, sentia. A fila do ônibus se misturava com a fila do telefone público, tamanhas eram as necessidades locais… “Bairro onde o ônibus faz ponto final era realmente pedaço de fim de mundo…”

“Olha aqui, dona! Se a senhora quiser me despedir é problema da senhora! Não… Não é verdade que eu faltei por isso na semana passada, meu filho ficou doente! Eu sei, eu sei que preciso do emprego, dona… Mas bairro onde o ônibus faz ponto final é pedaço de fim de mundo!”

E como gente perdida no fim do mundo era o que não faltava, na fila do orelhão as histórias mais ouvidas eram discussões entre patrões e empregados, marcação de encontro, mandação de notícia, gente ligando pra dar ou pedir algum tipo de desculpa…

“Oi, aqui é o João. Tudo bem com você? Ah… sei… que bom. Olha, tô ligando pra pedir desculpa por ontem… É eu passei muito mal… Não… Não se preocupa. Já tô bem sim. É… Mas não foi nada com você não. Foi mesmo aquela feijoada na casa da Meirinha. Achei até que você não ia mais falar comigo… Hum… Por isso que tô ligando, pra pedir desculpa pelo estrago que fiz na sua casa e… É, eu sei… foi mal”

Se eu fosse grande e não precisasse voltar pra casa junto com a minha mãe, nada me impediria de passar o dia todo ali, só ouvindo as conversas. Quanto maior a fila, mais divertido era, mais eu entendia sobre o mundo, sobre todos nós…

“Alôôô, dona Glóória! Nãooo tooô ouviiiindo. Fala mais alto! É o Severino sim. Tô ligando pra dizer que tive um inoportuno e não tenho como ir prai hoje… O que!? Não tô ouvindo! Fala um pouco mais alto… Olha, tá passando um caminhão, vai cair a ligaçããã…”

E o povo todo lá… Só vendo o seu Severino com a maior cara lavada, virada na cachaça antes mesmo do meio-dia, colocar o telefone no gancho e passar a vez pro próximo da fila, fingido que a ligação tinha caído. Voltava para o balcão do bar gargalhando com os amigos e virando suas doses de pinga goela abaixo. Soltava um último sorriso num segundo de expressão tão verdadeira, tão cheia de vazios e silêncios, que quase me fazia chorar. Perdi a conta da quantidade de vezes que vi seu Severino repetir histórias, mudar de emprego, correr do bar quando alguém dizia que a mulher dele estava virando a curva. Às vezes, acho que aprendi a mentir na fila do orelhão, tantas eram as necessidades de mentir, omitir e confessar diante das filas vestidas de platéia. A fila… A fila e eu, toda lá de orelha em pé! Mas, no meu caso, juro que não era só uma simples curiosidade pela vida alheia… Eu amava aquilo!

Quando o orelhão quebrava era um deus nos acuda de reclamação, mas quando alguém descobria um jeito de ligar sem precisar de ficha, virava herói. O carente do Betinho era o cara que sempre dava um jeito de consertá-lo, mesmo sem ter ninguém pra ligar. Fuçava, fuçava, era chamado de MacGyver, saía debaixo do orelhão aplaudido. Eu, no lugar dele, consertaria e não contaria pra ninguém nunca. Nunca. Olhava pro bestão do Betinho e pensava…

“Que imbecil… Vão usar até quebrar e vai ficar mudo de vez, outra vez.”

E era o que sempre acontecia… E, depois de quebrado, até a empresa de telefonia consertar, levava semanas, atrapalhava a vida do povo todo e lá se ia um pouco da graça da vida no fim do mundo. Nada de ligação nenhuma, nada das minhas preferidas ligações de amor. Ah, as ligações de amor… Quase me faziam pular de alegria. Pelo jeito da pessoa, antes de abrir a boca, eu já sabia se seria um papo de amor ou não. Moça nova e de roupa muito curta era certeza absoluta de ligação amorosa. Senhor muito perfumado, gente que fumava enquanto falava, algumas senhoras que bebiam antes, homens que bebiam durante, uma ou outra viúva, era ligação de amor na certa!

Lembro do moço que chorou numa despedida e me fez chorar junto, lembro da moça que chorou num pé na bunda e dei um jeito de apresentar para o moço que já havia chorado pela que partiu. Posso ter esquecido muita coisa nessa vida, sabe? Mas… de uma ligação de amor? Nunca.

Lembro de uma confusão que gerou uma revelação atrás da outra lá no bairro. O dono da farmácia havia morrido e semanas depois a mulher dele se pendurou no orelhão falando baixinho, se enfiando dentro da concha e dando de costas para os outros, cobrindo a boca… Era a pessoa abaixar o tom de voz e falar meloso pro povo todo já dar um passo a frente e acabar com o espaço pessoal. Todos grudavam no ser da frente, alegando que a pressão da proximidade era fundamental pra acabar logo com o telefonema e agilizar o movimento da fila. Mas é claro que eles diziam aquilo só pra ouvir a conversa, né?

Vez ou outra o povo deixava passar, mas as ligações silenciosas da viúva do farmacêutico se tornaram muito constantes, o falatório saiu da fila, virou fofoca… Até que, um dia, uma vizinha se encheu de esperá-la despendurar do telefone e soltou:

“tsc, tsc, tsc… o defunto nem esfriou e olha só a pouca vergonha dessa senhora!”.

A viúva fritou a cara de ódio, pediu licença na ligação, tapou o bocal do telefone e foi pra cima da vizinha que era a segunda de uma fila de mais de seis…

– É comigo que a senhora tá falando!?
– E que outra viúva alegre tem por aqui além da senhora!?

Não deu outra. A viúva largou o telefone, meteu as mãos na cintura e…

– A julgar pelas vezes que a senhora dormiu com o meu marido, tem eu e você, sua vagabunda!

Meu ouvido foi tampado pelas mãos da minha mãe, mas eu ouvi. As cabeças na fila viravam pra frente na resposta de uma, pra trás na resposta da outra e era um zumzumzum de “vixe!”, “agora vai!”, “é hoje!”, “vamo acaba logo com isso aí que eu tenho que trabalha!” e outras provocações ditas a espera de um desfecho maior. Eu sempre achava que a fila apartaria uma possível briga, mas todos só mexiam as cabeças, faziam graça e contemplavam a arena que vira e mexe o orelhão se tornava…

– Olha aqui! A senhora dobre sua língua e me respeite!
– Respeito o seu… (e tamparam meu ouvido…), sua sirigaita!

– Mãe, o que é sirigaita?

– Seu marido é que me procurava, sua seca!

– Mãe, o que é seca?

– Ah, é!? Pois saiba que ele procurava você e mais umas dez vadi… (ouvido tampado de novo) dessa merda de bairro de curioso!

– Mãe, tem que avisar a moça que ainda tem gente no telefone. Se ela não gosta de curioso, o curioso do lado de lá tá ouvindo tudo!
– Vambora daqui!

E lá fomos nós sem fazer a ligação desse dia e sem que eu me recorde bem do final da história das viúvas do farmacêutico porque passei muito tempo com o ouvido tampado. Minha mãe me puxava e eu virava o corpo, a cabeça, libertava as orelhas escancaradamente sendo a criança mais xereta daquele bairro tão legal, tão distante e ouvindo a amante gritar…

“Eu quero mais é morrer de saudade do seu marido!”.

Foi o último berro que me recordo, dessa vez, sem esquecer uma só palavra…

Mas… Onde é que eu estava mesmo? Ah! Eu estava falando sobre a ligação para o meu bisavô, que na verdade aconteceu em outro dia, num dia tranquilo que nada teve a ver com as confusões e a minha curiosidade sobre a vida dos outros. Um dia que fui até o orelhão com minha mãe, só para que ela soubesse do estado de saúde do bisa e me colocasse no telefone pra falar com ele por um tempão. Me deixou usar mais de três fichas e não se preocupou com a fila! Lembro de ter perguntado se o hospital que ele estava era de rico, já que tinha telefone até no quarto. Lembro do som do sorriso cansado, dele dizendo que eu era a sua bisneta mais engraçada e eu dizendo que engraçado era ele porque eu era a única bisneta que ele tinha. Lembro dele tossindo muito, dizendo que depois que saísse do hospital passaria na minha casa para pularmos amarelinha e que ele morria mesmo era de saudade de mim…

Alguns dias depois, quando me disseram que ele morreu, no auge das dúvidas e silêncio dos meus cinco anos de idade, achei que eu tivesse matado meu bisavô…

– Mãe, porque é que esse negócio de saudade mata a gente?

A pergunta foi feita no dia do enterro e o som de todos os choros não a deixaram ouvir nem responder. Lembro de ter perguntado para outras pessoas nos dias seguintes, mas ninguém responde nada direito quando a gente é pequeno. Continuei me sentindo culpada…

Numa das idas até a padaria, vi um policial no telefone e decidi me entregar. Escapei dos olhos da minha tia, corri até o moço, cutuquei-lhe a perna:

– Seu policial. Eu matei meu bisavô… Pode me prender.

Entreguei meus pulsos para serem algemados e fechei os olhos, mas nada aconteceu. Ele interrompeu a ligação, sorriu, perguntou pela minha mãe, me devolveu pra minha tia e eu continuei impune. Sem saída e justiça que me condenasse, a única coisa que pude fazer foi ficar de olho na amante do farmacêutico e ver quanto tempo levaria pra alguém mais morrer de saudade. Mas… Como ela nunca que morria, um dia eu cresci. Cresci e entendi tudo sozinha.

Hoje, assim como a amante do farmacêutico e o meu bisa, se for pra morrer, também espero que seja de saudade. Saudade do fim do mundo, dos sonhos, da minha mãe, das minhas tias, das mulheres que melhor me contaram seus amores, dos homens que melhor sussurravam ou esmurraram suas dores. Dos tios que nos visitavam, das viúvas do bairro, do seu João, seu Severino, do Betinho, das filas no orelhão. Saudade do bisa sorrindo de mim e querendo pular amarelinha tão velhinho do jeito que era… Quero mais é morrer de saudade.

Escrito por Alê Félix
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Escrito pela Alê Félix
24, novembro, 2010
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Envelhecer é uma merda. Quando era inconscientemente, ok. Mas chega uma hora que você se olha no espelho e compreende, enfim, que a morte e as rugas são mesmo uma questão de tempo. Odeio morrer. Odeio envelhecer, odeio não saber como escapar do destino. Daria tudo e mais um pouco por qualquer possibilidade de vida eterna, fonte da juventude, qualquer um desses sonhos fúteis de quem não é – e não pretende ser – espiritualizado.
Sempre, nas vésperas dos meus aniversários, ou fico gripada ou apaixonada. Dois tipos de vírus que só existem para nos jogar na cama, causar desconforto e nos fazer valorizar a saúde. Um a saúde física, o outro a mental.
Estou cansada. Cansada de todas essas gripes, ciclos, vésperas e de toda essa infinita capacidade de me apaixonar, esquecer e seguir em frente…
Até que a morte me separe.



Escrito pela Alê Félix
18, novembro, 2010
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Passei a vida pensando e só fiz descobertas nas poucas vezes que desliguei os pensamentos, passo as manhãs me exercitando e só emagreço enquanto durmo, corro atrás do pão nosso de cada dia e ele só me aparece quando sento. Tento deixar as coisas do amor pra lá e elas não param de se achegar. Quanto melhor eu respiro, melhor eu acho que vivo, mais eu esqueço da lição… O que nos alimenta é o que nos mata.
Vivo me sentindo cheia de coragem, mas tudo o que faço é viver esperneando e tentando fugir da morte. Porra nenhuma… Preciso aprender logo que o segredo é porra nenhuma.



Escrito pela Alê Félix
8, novembro, 2010
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Acabei de me hospedar em um hotel com outro nome… Queria saber se é fácil, difícil, queria não ouvir meu nome por alguns dias. Hotéis são bons lugares para morrer… Basta colocar a plaquinha do “não perturbe” e você pode ficar tranquilo para pecar ou desaparecer sem que o telefone da recepção toque no auge da brincadeira. Adoro o silêncio e senso de privacidade dos hotéis… Não existe solidão maior, também não existe solidão melhor.
O Candy me dizia que não gostava de viajar a trabalho porque se sentia terrivelmente só quando se hospedava em hotéis muito luxuosos e impessoais. Louco! Odeio me sentir sozinha quando preciso chorar por algum tipo de miséria, mas dentro de um hotel todo tipo de solidão só me remete a preguiça e a luxúria. Dentro de um hotel, tenho a falsa impressão de que nem deus nem o diabo a quatro das pessoas conhecidas, estarão de olho nas merdas que posso vir a fazer. Paraíso… pedacinho de paraíso.

Ester Vasti de Amestris… Eu sei, devia ter dado um nome mais simples, mas ando precisando me sentir uma rainha rebelde. Uma ou duas? Tanto faz… Quantas rainhas e identidades secretas forem necessárias para fugir e mudar a história.



Escrito pela Alê Félix
5, novembro, 2010
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Foi uma noite sem paz, dessas que os sonhos acontecem como se fossem programas de televisão. Assisti todos e de nada eles me serviram. Acordava durante a madrugada, revirava, abraçava, achava que adormecia, mas não me ligava mais…
De vez em quando meu corpo desperta pedindo que eu tome alguma atitude… Urgente, de preferência. Levei um susto quando o sol entrou pelo quarto e me fez ver que, além de não estar acordada, ele já havia partido. Tentei avisá-lo pela janela, mentir que o café estava na mesa só para trazê-lo de volta, mas lembrei que na semana passada troquei o pó pelo chá. E ele nunca foi de chá… Talvez, ele nunca tenha sido de dose nenhuma, de droga nenhuma além de mim. Me tomou pra experimentar um pouco dos sonhos que aconteciam como se rodassem dentro das TVs, deixei que ficasse porque sonhei que ao lado dele eu dormiria para sempre e em paz…
E o tempo tem passado cada vez mais rápido… Tão rápido que um dia é capaz que a gente sinta saudade das pessoas que trocamos por nós próprios. Será a saudade o despertador necessário para enxergarmos que até o amor próprio é uma grande bobagem? Que auto preservação só serve pra nos tornar comuns e anestesiados, sobrevivendo entre espaços vazios que silenciam até mesmo o nosso pulso? Talvez, a gente só precise experimentar, aproveitar e parar de questionar… Tanto. Estamos acordados, a mesa está vazia e já é dia. Nada mais nos impede de ir embora, além dessa maldita cama que ainda nos faz perder a hora. Então, meu amor… Não me pergunte mais “e agora?”. Eu só preciso dormir… e gozar um pouco antes.



Escrito pela Alê Félix
4, novembro, 2010
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Deitei sem conseguir dormir, levantei sem querer sair da cama, tô em pé e com medo de cair. Odeio as fases das decisões importantes. Antigamente eu até que encarava bem. Respirava fundo e tentava não esquecer que, no final das contas, são elas, as decisões importantes, que se tornam as boa histórias do futuro. O problema é que hoje eu acordei de saco cheio do futuro… Preferia ter ganhado do presente a possibilidade de ser covarde em paz e não fazer absolutamente nada. Mas não… como sempre, tá lá meu cérebro bancando o despertador e gritando “acorda, babaca! anda e chega de drama!”.
E lá vou eu obedecendo, caminhando, as vezes batendo, as vezes apanhando, quase sempre com medo, quase sempre disfarçando.

PS. O blog está de volta. Escrever, por incrível que pareça, foi o único jeito que encontrei nessa vida para mentir menos.



Escrito pela Alê Félix
1, novembro, 2010
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