Meus sorrisos escancarados, seus dentes tatuados e uma porção de desejos esparramados pelo chão.

Esse meu desejo… Quando penso que ele permanecerá para sempre calado, se joga na pista dando show no salão, segue de mãos dadas dançando colado.

Esses meus desejos… Um bando de desavergonhados! E a batata roxa, toda mordida… E essa minha cara boba, agora, toda inibida.



Escrito pela Alê Félix
14, junho, 2012
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Gripada, jogada na cama com aquela cara típica de quem está no leito de morte esperando a vez, decidi sair em busca de uma sopa milagrosa. Levantei, tomei banho e, na tentativa de achar felicidade tanto quanto um antigripal, fui parar em um restaurante nordestino que eu era louca pra conhecer. Cheguei, sentei, pedi o cardápio e perguntei pro garçom…

– O que você recomenda pra quem está nas últimas?
– Cachaça e caldo de mocotó.
– Hum… Se eu for de cachaça vocês vão ter que me deixar dormir na cozinha até segunda-feira. Mas, vamos lá, caldo de mocotó… Nunca tomei. Nem sei o que é mocotó. É bom mesmo?
– Opa! Especialidade da casa! E é um santo milagreiro pra quem tá com gripe, a senhora não vai acreditar na disposição!
– Ok. É tudo o que eu preciso. Manda um grande.
– O grande é grande pra valer, hein dona… Tem certeza? O caldo é milagroso, mas tem que ver se a senhora aguenta o tranco…
– E quem é que não aguentaria uma dose cavalar de saúde? É só sopa. E eu não como direito há séculos… Preciso sarar dessa gripe.
– Mas olha, dona… O negócio é…
– Não precisa se preocupar… Pode trazer.
– Bom, a senhora é quem manda…

Virado o primeiro caneco grande de sopa de mocotó…

– Que delícia isso… Muito bom! Vê mais um, por favor?
– Dooona… Tem certeza?
– Tenho! Já tô até esquecendo da gripe, menino! Que coisa boa de caldo. Deviam vender isso na farmácia!
– Mas… Olha…
– Mais um. Grande!
– Tá bom… A senhora é quem manda.

Virado o segundo caneco grande de sopa…

– Caramba… Tô esquisita.
– Eu tentei avisar a senhora…
– Não… Não tô passando mal não. Só esquisita mesmo. Um calor… Que coisa. Com esse tempo danado de frio, como posso com esse calor?
– Então, dona… Eu tentei avisar, mas a senhora não me ouviu. Mocotó é bom pra gripe, mas também é bom pra outras coisas, né?
– Que coisas!?
– Coisas do tipo da natureza do corpo…
– Como assim!?
– Coisas maiores. Ainda mais a senhora vindo jantar sozinha… Agora lascou… Tem marido em casa?
– Que!? Como assim, meu senhor!?
– Pois é… Mocotó é afrodisíaco, dona. Isso tem um efeito intrasexual quase paranormal!
– Anh!?
– Intrasexual, dona… É o furor que vem de dentro, não acontece através dos zóio nem do tchaca-tchaca na butchaca.
– Anh… E “paranormal” seria porque…
– Ué, porque paranormal é coisa de espírito! E lá na minha terra a gente dizia que quando o caldo entrava, o espírito da boiada baixava.
– …
– A senhora me desculpe a riqueza de detalhe na explicação, mas é melhor a gente adquirir cultura do que sair doida por aí comendo nos lugar sem saber porquê, né? E além de tudo é gulosa! Agora lascou. É por isso essa caloreira toda aí… Afrodisíaco! Dois canecos! Dos grandes!

Eu bem que quis mandar ele plantar batatas, mas a questão do afrodisíaco era importante ser esclarecida…

– Cê tá de brincadeira comigo que essas coisas funcionam de verdade? E agora!? O que eu faço? Quanto tempo isso dura?
– Sem marido em casa?
– Tem marido nenhum não!
– Vixe… Nessa quantidade toda que a senhora tomou… Sem marido vai ser osso duro de roer. Pegar gripe tudo bem, mas pior de tudo é pegar gripe sem pegar ninguém! Ainda mais em pleno sábado a noite e toda bonitona desse jeito… Tsc, tsc, tsc. O que a senhora tem de errado? Deve ser problema de gênio, né? Tem gênio ruim, não tem? Certeza de que é problema de gênio. Devia ter ficado só na cachaçinha, dona… Seria melhor. Foi de mocotó, agora lascou.

Acalorada, segurando meu gênio ruim, achei melhor correr pra casa e tentar dormir. Sozinha. Eu e meu gênio ruim, tentando controlar os efeitos intrasexuais paranormais do espírito daquela maldita boiada dos dois canecos. Grandes!



Escrito pela Alê Félix
27, maio, 2012
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Com os olhos abertos, me sinto seta sobre seu caminho incerto. Com os olhos fechados, te sinto concreto sob passos alados. Com os olhos marejados, sigo aguardando pelo acaso, desviando olhares, me recusando a escrever novos casos… É que de olhos bem fechados, sei que só o que tenho ou temos precisado, é apagar casos passados. De soslaio, te olhando com o rabo ouriçado dos meus olhos, por enquanto, sigo orando por um desencanto.

Para me adicionar ou te dividir, basta clicar aqui.



Escrito pela Alê Félix
8, maio, 2012
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E aí o Jaime me disse…

– Pessoas criativas (ou que se acham assim) deveriam ter o maior cuidado do mundo com a escolha de seus companheiros, senão vão passar a vida fazendo coisas legais e escondendo para não chatear a outra pessoa. Ou deixando de fazer, o que é bem pior.

Logo depois dele dizer isso, eu não havia percebido, mas fiz para mim mesma uma promessa. E, por mais cabeça oca que eu seja, espero nunca mais esquecê-la…

– Ontem o Vini viu uma molecada de cinco anos rolando no chão, espalhando quilos de confetes por todos os lados e me disse “Como é bom ter cinco anos, é muito mais divertido. A gente pode fazer tudo o que quiser!”. Perguntei porque ele não fazia o mesmo, já que estava com vontade. Ele me disse que só havia se divertido daquele jeito até os sete anos, com oito passou a ter vergonha e deixou de ser tão legal. No mesmo instante, tentei fazer ele mudar de ideia rolando no chão junto com os pivetinhos de cinco anos e dizendo que eu é que não ia ser louca de me importar com essa palhaçada de ter vergonha e deixar de fazer algo com oitenta, só porque a falta de julgamento deixou de valer aos setenta e cinco. Não adiantou muito, acho que só piorei a situação despertando os olhares para a tia doida rolando no chão de confetes, mas… Eu tentei.

Olha, nem sei se tem a ver com criatividade… Acho que basta ter vontade e saber que por algum motivo não podemos fazer o que queremos. Eu não tenho só vontade de escrever livros, pintar sem saber pintar ou ter uma banda mesmo sem saber cantar. Tenho descoberto que minha vontade maior é a de viver e ser totalmente sem vergonha, no que diz respeito a tudo. Completamente sem vergonha. Quero falar, fazer, ser quem eu tiver vontade de ser sem ninguém me censurando, se envergonhando das minhas ações, dizendo que “socialmente” o certo seria se eu não fizesse isso ou aquilo do meu jeito errado de ser. E eu nem tenho jeito! O “meu jeito”, que tanto já foi massacrado por aí, sempre aparece na hora que as coisas acontecem, não há nada de premeditado ou certo ou definitivo. Sozinha, isso se chama espontaneidade. Ao lado de alguém, a espontaneidade já foi apelidada até de rolo compressor.
Meu amigo querido… Sinto lhe informar que não adianta muito escolher companheiros não castradores. Vocês, homens, sempre estarão sujeitos as mulheres ciumentas, controladoras e que enxergam o sucesso dos maridos como virilidade exposta no balcão para servir a concorrência. Na cabeça da maior parte de nós, mulheres, tenho certeza de que é preferível um homem doente (que elas possam cuidar e saber onde está), do que um criativo solto, exposto de um jeito que ela possa perdê-lo ou não controlá-lo.
E, acredite em mim, ser mulher e sentir essas necessidades de se expressar ou realizar é ainda MUITO pior! Se for exibida igual eu sou, é a morte de qualquer alma ou relacionamento. Meus exs podem dizer o que quiserem, nunca conheci um homem que gostasse de mim como eu sou. Sempre havia controle sobre quem eu era, fazia, escrevia… “Onde já se viu você escrever isso!?”, “Todo mundo vai achar que é verdade, ninguém vai saber que isso é fruto da sua imaginação!”, “Vão achar que eu sou corno, porra!”, “Você não tem o direito de publicar isso!”, “Precisa escrever as partes obscenas?”… E por aí vai.
Pra uma mulher, é tudo muito pior. O julgamento é severo até quando falamos palavrão (ainda!). E vem do namorado, das pessoas que trabalham conosco, da família, até dos amigos que deveriam nos conhecer bem o suficiente pra nos obrigar a zelar pela fidelidade da nossa essência.
Você é um dos meus melhores amigos, é o cara que eu ligo pra contar quando tô apaixonada ou ferrada e sabe bem como eu fico maluca de criatividade e vontade de existir quando tô nesse estado. Também tá careca de me ouvir dizer que está se tornando cansativo, as vezes impossível e que praticamente não tenho visto mais motivo algum pra continuar pedindo que me entendam, aceitem e gostem do fato de que não pretendo só explorar a droga da minha criatividade, eu quero mais é pendurá-la no alto de um poste. E que é uma pena, uma pena do caralho que o “amor” seja um sentimentozinho tão frágil e babaca que não suporte um pouquinho mais de cor, aplausos, vaias ou holofotes para o outro e não somente para o nosso próprio umbigo. É uma pena que a merda do amor, muitas vezes, seja só um grande recalcado que morre de vergonha e se esconde num quartinho escuro, sempre muito bem trancado. Uma pena. Uma puta pena.
Dia desses eu ouvi um garoto dizendo que se me namorasse ia se sentir corajoso pra cacete, porque eu era mulher demais (no sentido de fazer coisas demais, pensar demais, existir demais). Fiquei me perguntando que diabos de frase era aquela, mas acho que realmente tenho desistido de tentar entender e escolhido mesmo é ficar sozinha. Eu adoro namorar. Sou a pessoa mais feliz do mundo quando tô apaixonada. Mas uma coisa é darmos mais prioridade para o julgamento dos outros (e do outro) aos vinte, trinta anos. Depois dos trinta, a razão me obriga a lembrar que talvez eu só tenha mais uns trinta de vida legal, saudável, bonitona, disposta. Depois disso, espero que não, mas é possível que as nossas vontades abram espaço para entrar o que puder vir de serenidade e só. Com sorte.
Eu adoraria encontrar um moço corajoso que me deixasse ser quem eu sou e em paz. Principalmente, alguém que me deixasse escrever em paz todas as obscenidades e vontades que dessem na porcaria da minha telha. Adoraria, mas não vou arriscar meus próximos trinta anos de vida útil pra administrar o ego e as inseguranças de alguém ou de uma sociedade que estabeleceu os absurdos que lhe convém, mesmo que eu não tenha nada a ver com isso. Adoraria, mas trinta anos é muito pouco tempo pra eu dedicá-lo a outra pessoa, que não seja eu mesma. Se a pessoa vier forte, ok. Mas não vou escolher mais nada além do exercício da falta de vergonha e da banana que espero dar para tudo o que dizem ser certo e errado no comportamento de uma pessoa inadequada como eu.
E que Deus me deixe livre e me guarde! Bem longe dessas almas que só se sentem protegidas quando disparam seus cabrestos cerebrais.



Escrito pela Alê Félix
4, maio, 2012
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– Oi… Eu vim pegar o Vinícius.
– Claro, bom dia! Sua irmã acabou de ligar dizendo que você viria buscá-lo.
– Sim…
– Tiiiiiia! Espera aí, espera aí um pouco…
– …
– …
– Aqui! Aqui! Essa é minha tia! Pergunta pra ela se não é verdade…
– O que?
– Ahhh, é que o Vinícius conta tanta história…
– É verdade que você trabalhou pro filme Jogos Vorazes?
– Hum… É… sim. Mas eu só…
– E é verdade que você escreve histórias e uma delas virou filme do Oscar!?
– Claro que não!
– Não foi pro Oscar, seu burro! Foi… Como é mesmo o nome, tia?
– Cannes? Festival de Cannes… Isso sim, mas era só um curta-metrag…
– Viu!? Não falei!
– E é verdade que com quinze anos você já tinha conta no banco, era fotógrafa e com dezessete já tinha até um apartamento?
– Sim, mas não era exatamente meu… Era alugado e…
– E você teve mesmo um bar de reggae cheio de malucos e um deles morava no sóton e você nem sabia?
– Pois é… isso realmente foi um problema, mas não era bem…
– Verdade que você já casou quatro vezes e nem nunca quis ter filho?
– Quatro!?
– Uma aumentada irrelevante, tiiia…
– Verdade que você viaja pra fora do Brasil sozinha, sem falar nenhum idioma e mesmo assim nunca se perdeu?
– Verdade que levou uma picada de cobra e a cobra que morreu?
– Não tô acreditando, Vinicius…
– …
– Verdade que você já viajou para os Estados Unidos com um Mustang V8?
– Noooossa! Que cor que ele era!? Dessa eu não sabia!
– Não, não foi bem assim… Eu fui até lá de avião. Chegando lá é que viajei de carro com o V8, mas…
– Verdade que você e o Vini são de uma família de ciganos pagãos e que vocês sacrificam coelhos e fazem churrascos durante a Páscoa?
– Vini…
– Pô, tia… Tá bom… tá bom… Essa eu exagerei um pouco.
– …
– Verdade que você gosta de um cara que…
– Viiiiniiii! Pô, Vini… Isso era segredo!
– Eu só falei pra eles da parte das cartas, não falei que ele é um…
– Xiiiiiii!
– Falou sim!
– Carta? Além dele ser…
– Xiiiii!
– Cartas? Porque vocês não usam o e-mail?
– Porque a minha tia é muito mais foda do que a sua mané!
– Ok, chega disso! Vambora, Vinícius!
– Mas é ou não é verdade?
– É verdade! Tudo verdade!
– UAAAAAAAU! TUDO VERDADE?
– Valeeeeeu, tiiia!
– VERDADE VERDADEIRA?
– Eu falo pra vocês que minha tia é bem mais esquisita que a de vocês… Quem tá mentindo agora, hein? Hein?
– Até o resto que a gente ainda não falou é verdade?
– Esquisita? Esquisita seu nariz, Vinícius!
– Jeito de falar… Esquisita de legal. Mas é tudo verdade!
– Que demais, cara…
– Chega! Vambora.
– Não falei? Não falei pra vocês?
– …
– …
– Ela já dirigiu um V8, cara…
– Legal…

E entramos no carro, demos as costas para os três pivetinhos amigos do Vini e fomos embora. No carro…

– Da hora! Da hora! Agora quero ver eles dizerem que eu minto…
– Vini, mas você não pode dizer essas coisas da minha vida pros seus amigos. É papo nosso, da nossa família, é coisa minha. Sem contar que ó… Esquisita uma pinóia!
– Jeito de falar, tiiiia…
– Claro… Agora seus amigos vão achar que eu sou uma aberração.
– Tia, não pira. E olha pelo lado bom. Eu tenho dez anos e você tem…
– Trinta! Tenho trinta.
– Isso… trinta. Trinta pra sempre. Tô ligado. E quantos anos tinha seu último namorado?
– Quando eu conheci ou separei?
– Vinte e poucos do começo ao fim, certo?
– E…?
– E? E que você gosta de fazer coisas de jovens e legais.
– E…?
– E aí que você me ajuda, eu te ajudo. Pensa comigo… Quando você tiver… Quarenta! Eu vou ter um monte de amigo de vinte achando você a mulher mais legal que eles já ouviram falar durante toda a adolescência deles.
– E desde quando você acha que eu vou precisar de você pra me arranjar namorado?
– Tô falando de literatura, tiiia! Pensa no público que você vai ter daqui dez anos que coisa linda! Se estiver solteira, então… Melhor ainda! Vai poder namorar qualquer um deles estalando o dedo. Isso sem contar que quando eu conto as coisas que você já fez, na mesma hora, eles ficam corajosos e topam fazer as coisas mais erradas ou arriscadas que eu proponho, sem pensarem muito.
– Que coisa errada!?
– Jeito de falar, tiiiia! Mas você devia achar legal. Porque eles se inspiram em você e ficam corajosos ou te pagando pau. Tudo bem que você é minha tia e eu devia achar isso ruim, mas falar da sua vida me dá moral, entende? Então… já eras!
– … Não tô acreditando, Vinícius… E moral você tem conquistar com as suas histórias, garoto! Não com a dos outros.
– Relaxa, tia… Eu estou no caminho.
– Espero que sim!
– Fica tranquila…
– Hum…
– …
– Quantos anos você disse pra eles que eu tinha?
– Trinta!
– …
– Trinta ué… Trinta redondo! Juro.
– Acreditaram?
– Anram…
– Hum… Ok.
– Ótimo.
– Cara de pau…
– De família…
– …
– Tia?
– Que?
– Batman Live?
– Batman Live.
– Na pista?
– Primeira fileira.
– YES!
– Eu sou a Mulher-gato!
– Eu sou o Coringa.
– Não, não… Vamos mudar isso já e escolher heróis. Não pega bem esse negócio de escolhermos sempre os vilões, Vini… Quem você é de super-herói? Pensa aí…
– Tia, se liga. Vilões tem humor, heróis raramente. É só por isso que eu gosto dos vilões mais do que heróis. Eu gosto do Coringa porque ele é engraçado, não porque quero me tornar um psicopata igual a ele.
– E desde quando você sabe o que é um psicopata?
– Tiiiia… Minha mãe é psicóloga!
– …
– …
– Mas não é certo…
– Claro que é.
– …
– Que? Que cara é essa?
– Eu queria ser como a mulher-gato…
– … Já vi tudo.
– O que?
– Vai chorar nas cenas de amor lembrando do morcegão.
– Vai te catar, Vinícius!
– Falou, mulher-gato… Então liga logo esse carro porque ele tá longe de ser o batmovel e eu não quero chegar atrasado no Batman Live.
– Tá folgado, hein Coringa?
– De família…

Durante o espetáculo…

– Pô, tia… que cena bizarra!
– A fuga do Coringa?
– Não, né? Você chorando por se identificar com a personalidade da Mulher-Gato.
– Pô, Vini! É triste. Ela não é ruim…
– Também não acho… Nem acho que ela é vilã.
– Claro que é vilã.
– Claro que não é. É o que ela disse pra namorada do Coringa, ela trabalha sozinha. Não luta pelo bem nem pelo mal, tá acima dessas coisas.
– Tem certeza de que você tem dez anos?
– Tia, sem querer ofender, mas você chora se achando a mulher-gato. Você só me acha muito esperto porque parou nos dezesseis, né?
– Oooo, garoto!
– Com todo o respeito!
– …
– Que foi agora?
– Sacanagem ela acabar sempre sozinha, né? E ela gosta do cara, não fica de joguinho babaca… Não é certo ela acabar sempre sozinha não. Sozinha e com fama de vilã. Puta sacanagem.
– Tia, ela curte essa vida! Onde já se viu um gato querer namorar um morcego!? Se ela desse em cima do Garfield igual ela dá mole pro Batman, já estaria casada e com meia duzia de filhos, no maior sossego. Besta dela. Tá sozinha porque quer!
– Odeio Garfield…
– Então continua correndo atrás de morcego na tentativa de evoluir sua espécie e transformar unhas afiadas em par de asas pra você ver só onde vai parar!
– Evoluir minha espécie? Onde você aprende essas coisas!?
– Na escola, ué!
– Cara… Perto de você, com dez anos eu era mega amadora!
– Você nunca vai deixar de ser amadora, tia…
– … Eu devia sair pra conversar com você mais vezes, sabe?
– Sei… Mas só dou conselho bom na primeira fila, ok?
– Tsc, tsc, tsc… Família de vilões essa nossa…
– Eu sou o Coringa!
– …
– Não vai falar não? Tem que falar… Eu falo eu sou Coringa, você fala eu sou a mulher-gato. Vai aí…
– …
– Fala logo e para com essa cara de choro, tia! Vai queimar meu filme com as criancinhas.
– Sou a trouxa da mulher-gato…
– Aeeee…Toca aqui!



Escrito pela Alê Félix
20, abril, 2012
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Quase ninguém sabe disso ou demora muito pra perceber, mas dinheiro só é realmente importante enquanto nos rouba o sono. Fama é só mais um tipo de vazio, um fardo disfarçado de poder e que cabe a nós dar ou tirar essa fantasia de quem a tem. Quase ninguém sabe disso e quase passamos a vida sem nos dar conta, mas tudo que nos dá medo, insegurança, todos os nossos preconceitos e certezas absolutas são os responsáveis por tornar nossas vidas tão pequenininhas e descoloridas. Quase ninguém quer ver isso, mas toda beleza e juventude está condenada as rugas da pele e da alma. Quase ninguém sabe disso e quem sabe também preferiria não acreditar, mas o casamento é uma tentativa equivocada de prender uma boa companhia e só deveria ser levado adiante quando o desejo fosse tanto, tanto que se tornasse impossível dizer outra coisa além de sim e fim. Quase ninguém dá a devida atenção, mas a amizade é o único tipo de amor capaz de atravessar o tempo e a realização pessoal o único sentimento capaz de dar a vida alguns instantes de sentido. E que nossa única prece deveria ser por saúde e serenidade, mas quase ninguém a faz pra valer porque acha que nunca vai realmente morrer. Quase ninguém confessa, mas filhos, família, casa… Nada disso faz a gente se sentir menos sozinho ou mais protegido. Quase ninguém sabe disso ou demora muito tempo pra perceber, mas a vida passa, acaba e o máximo que podemos fazer é respirar fundo, aprender a perdoar, se permitir e abraçar. Abraçar deus, o mundo, alguns sonhos e alguma paixão a sua escolha… Um pedaço bom de ser humano que seja sorridente e gostosinho, não lhe acorrente o espírito, goste pra valer do seu caminho mesmo quando distante, que você sinta que pode estender e entrelaçar as mãos, largar a mão das besteiras, recolher as lágrimas e dormir juntinho de vez em quando. É só isso. E putz… Como se leva tempo pra ver e apostar em tudo isso.

http://www.facebook.com/alessandrafelix



Escrito pela Alê Félix
14, março, 2012
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Em qualquer bairro da periferia de São Paulo, dois movimentos eram levados muito a sério nos anos oitenta: a organização da vizinhança pra alugar ônibus e ir de caravana em enterro de celebridade e a organização da vizinhança pra alugar ônibus e ir de caravana no programa do Silvio Santos.

Graças a Deus e o mínimo do bom senso, os passaportes para as caravanas dos enterros nunca interessaram nem a mim nem a ninguém da minha família, mas… alguns segredos do passado precisam ser desenterrados…

A escola onde eu estudava também fazia caravanas para os programas do SBT, mas eu jamais me atreveria a ir com colegas de classe em uma delas. De jeito nenhum! Qualquer adolescente que fizesse algum comentário sobre as atrações apresentadas pelo Silvio Santos, mesmo sabendo que TODO mundo assistia, era taxado de alienado ou mega pobre.

– Credo! Você assiste isso? Programa de pobre, hein? Cabecinha…

Uma coisa que só quem mora na periferia sabe – e pode parecer completamente bizarro pra quem é de fora – é que até dentro de favela, existe divisão pra ver quem é o menos pobre e quem é o mais pobre. Eu, particularmente, me considerava a nata da ala nobre, cool e intelectual do Jardim São Francisco e da escola estadual de primeiro e segundo grau que estudava no bairro do Socorro. Ou seja, nem morta, eu me enfiaria em uma daquelas caravanas ou diria que fiz outra coisa no domingo, que não fosse algo de matar minhas amigas de inveja e os meninos de admiração.

Eu me orgulhava por ter recusado passaporte até pro Domingo no Parque, embora – em segredo total e absoluto – eu fosse alucinada pra entrar naquele foguete, esperar a luz acender, dizer NÃOOOO “para os espelhinhos velhos que não valiam nada” e SIMMMMM para “todos os brinquedos do programa mais uma super-ultra bicicleta sem rodinhas”.

Até os quatorze anos de idade eu aguentei bem e disse não para todos os convites. Era tranquilo, até que minha melhor amiga terminou com o namorado, entrou na maior fossa e me encheu a paciência dizendo que queria porque queria ir na caravana pro Show de Calouros. Ela era apaixonadíssima pelo Sylvinho, um cantor na linha do Fiuk e que na época bombou em tudo que era rádio com a música “Meu Ursinho Blau-Blau”. Pois é… Era uma letra quase gay, de um cara pedindo pro seu ursinho fazer a namorada voltar pra ele. Eu passava horas com a minha amiga tentando convencê-la de que a letra era completamente anti-sexy na voz de um cara, mas ambas concordávamos de que era impossível resistir ao sorriso do Sylvinho.

– Lu, na boa, um cara que diz “AI… AI! Meu ursinho Blau-Blau de brinquedo… Vou contar pra você um segredo… Só você mesmo pra me aturar”, é menininha!
– Mas o que ele diz em seguida? O que? Hein? O que? “AHH… Esse meu coração tão vadio” Concorda comigo que “coração vadio” é másculo?
– Galinha sim, másculo não.
– Ok… Olha o resto “se amarrou nesse corpo macio, ela quer é me fazer pirar…”
– Pura poesia…
– O cara é lindo!
– Lindo… Não tô discutindo beleza física! Mas se é pra pagar mico cantando musiquinha, faz igual ao Wando!
– Ahhh, claro! Mil vezes melhor “Quero te pegar no colo, te deitar no solo e te fazer mulher.”.
– Isso não é Wando! É Agepe!
– Tudo igual! E tudo homem feio!
– Não tô discutindo beleza física!
– Tá bem… Se você acha o Wando legal…
– Só tô dando exemplo de letra que vale a pena cantar e pagar o mico.
– Você vai ou não vai no Show de Calouros comigo?
– Claro que não!
– E no Qual é a Música?
– Nunca!
– Parece que essa semana quem vai no Qual é Música é o Sylvinho…
– Nem morta!
– …
– Não.

Eu não sei direito como foi que essa conversa levou a outra e mais outra e uma aposta e quando vi eu tinha perdido e estava sendo guiada pelo Roque para sentar na primeira fileira do Show de Calouros, disputado entre Sylvinho e Naim.

Minha amiga eufórica e eu morta… De vergonha!

– Roque, por favor, desculpa… Mas eu prefiro sentar beeem lá no fundo.
– Nãããoooo, minha filha… De jeito nenhum! É ordem da casa. A gente tem que separar “as bonita” e colocar tudo sentadinha na primeira fileira.

Vaidade é uma merda… Ouvi isso, dei um sorrisinho pro Roque, sentei na primeira fileira junto com minha amiga gata e mais um monte de linda, me achando. Silvio Santos é um hipnotizador de pessoas… Se ele dissesse “agora todo mundo plantando bananeira”, aquilo teria virado uma aula de yoga numa fração de segundos. Até eu – que achava que pensava – minuto depois dele chamar o Sylvinho pra cantar, estava me prestando ao papelão de cantar e pular em frente das câmeras… Não gritei. Mas dei umas boas sacudidas.

Sabendo que estávamos no banco das mais lindas, era como se um espírito de miss debilóide invadisse nossos corpos. Nossas poses diante das câmeras variavam de meninas sérias, para sorridentes com miradas sexys. Era ridículo, mas tenho que admitir que foi divertidíssimo. Eu não lembrava mais de nada do que havia pensado até então, só curtia as músicas, as brincadeiras do Silvio e o momento. Se me dessem um papel pra assinar que eu era presidente do fã clube do Naim ou do Sylvinho, eu assinava na hora. Quando começaram os quadros que precisavam da participação da platéia, o segredo musical proposto pelo Silvio era a palavra “louca”. Ou seja… Tava pra mim! Era só eu correr até o microfone e cantar alguma música que na letra tivesse aquela palavra. Com a minha cabeleira morena e franja cortada no estilo da franja da Angélica, vestida na última moda com meu blazer listrado de branco e amarelo, dotada de toda a desenvoltura de quem não faz a menor ideia da merda que está prestes a fazer, soltei…

– Você é luuuz. É raio estrela e luaaar. Manhã de sol. Meu iaiá, meu ioiô. Você é sim… E nunca meu não. Quando tão LOUCAAAA. Me beija na boca. Me ama no chão…

E o seu Silvio Santos…

– Não sei que música é essa… Você só sabe essa parte? Canta mais um pouco pra eu ver…

O mundo inteiro sabia que música era aquela. Óbvio que era brincadeira dele, mas…

– Como assim não sabe, Silvio!? Ó… prestenção! Me suja de carmim…
Me põe na boca o mel… LOUCAAA de amor, me chama de céu ohohohoh… E quando sai de mim… Leva meu coração! Você é fogo… Eu sou paixão. Viu?
– Meu bem… Que eu sou fogo eu já sabia. Mas que você é a paixão eu só tô vendo agora! Rooooque! Paga pra ela Roque!

E eu lá… com meu sorriso de tonta achando o máximo e vibrando com a bolada que levei no momento seguinte, quando ouvi a chamada para que o Pablo cantasse qual era o segredo musical: Wando! Fogo e Paixão. Na cabeça! Voltei pro microfone pra receber meu prêmio…


– Qual é mesmo seu nome, meu bem?
– Alessandra…
– E de qual caravana você é?
– Do Jardim São Francisco…
– Uma salva de palmas pra caravana do Jardim São Francissssco!

E quem disse que eu fui embora quando acabou o programa? Quem quisesse ir, poderia ter ido, mas naquele dia eles gravariam mais três programas: outro “Qual é a Música”, um “Tudo por Dinheiro” e o “Roletrando”…

– E você ficou na fileira das mais bonitas em todos eles?

Me perguntou o WANDO – vinte anos depois – sentando ao meu lado, num voo do Rio de Janeiro pra São Paulo e que acabou virando café, a descoberta de alguns amigos em comum e uma porção de gargalhadas entre uma conexão e outra no aeroporto de Congonhas…

– Não só fiquei na fila das mais ajeitadas como ganhei uma bolada no Roletrando e outra grana boa na brincadeira das gavetas que saiam cobras do Tudo por Dinheiro.
– HAHAHAHA… Mentira…
– Sério! Comprei até uma bicicleta na época.
– E o senhor Silvio Santos te chamou três vezes seguidas para participar das atrações!?
– Pois é, Wando… Isso foi complicado… Por causa disso eu fui odiada no meu bairro por um tempo. Mas putz… Não foi por mal. Ele perguntava quem queria participar, eu levantava a mão e ele escolhia… Com quatorze anos, cê acha que eu ia pensar “não, eu já brinquei, vou pedir pra sair…”.
– Caiu nas graças do patrão!
– Foi divertido…
– Mas Alê… E aquela história de que você não ia nas caravanas para o SBT porque não queria a fama de alienada na escola? Todo mundo da escola deve ter visto quando o programa passou na televisão, não? Como é que você fez depois de ter aparecido em quatro programas seguidos?
– Ué… Não fiz. Disse que não era eu!
– Como não!? Caravana do Jardim São Francisco, Alessandra, blazer listrado de branco e amarelo… Quem mais?
– Wando… Você me perguntando isso? Você é um romântico… Um poeta! Você sobe no palco e canta! Como é que um cara que dedica a vida a cantar as e para as mulheres… Me pergunta uma coisa dessas? Você sabe melhor do que ninguém que é só negar até o fim, Wando! Muito mais fácil convencer um bando de adolescentes de alguma coisa do que convencer mulheres de algo que você queira.
– Ahh, não é mesmo! Se eu disser que não era eu na televisão, ninguém acredita.
– Se eu subir no palco e pedir pras malucas jogarem as calcinhas, também não, né!?
– HAHAHAHAA…
– Mas e o Naim, hein? Que fim levou?
– Nunca mais vi! E o Ovelha?



Escrito pela Alê Félix
8, fevereiro, 2012
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Acho que é por sentir o mesmo que o Ansel Adams que nunca me apaixonei por ninguém que não tivesse o mínimo de noção fotográfica. Eu sei que parece bobagem, mas se o rapaz escrevesse e fotografasse direitinho sempre dava um bom norte pro meu coração. Ele podia ser açougueiro, imperdoável seria se cortasse a cabeça de alguém nas fotos de família. Podia ser o moço mais lindo… Era só através do olhar e das palavras que não eram ditas da boca pra fora, que a alma do lindo se revelava pra mim.

É assim até hoje, embora eu mantenha o pé atrás diante de grandes artistas. Gosto dos amadores, dos descompromissados, dos que nunca precisaram transitar entre a iluminação e a humilhação de um processo de criação. Gosto dos que fazem arte por necessidade de arte! Aquele tipo de ser aparentemente comum que passa a semana toda disfarçado no meio da multidão engravatada e só precisa de um fim de tarde bonito para sair da toca, pensar, criar e dormir feliz. É desses moços que eu gosto… Moços que nunca tiveram que sarar de depressão por falta de criatividade, nem lidar com os mínimos detalhes que podem transformar o dom em desastre. É… nunca gostei dos profissionais. Morro de admiração, mas nunca desejei morrer de mãos dadas com um deles.

Ok… Estou mentindo. Já gostei… Mas foi um sofrimento. Éramos muito garotinhos, eu só sabia o nome dele de ouvir e achar diferente na hora da chamada. Na hora do recreio ele nunca se misturava e eu achava que fosse por pura timidez, não porque era a hora que ele podia fazer o que mais gostava. Xereta, fui até o canto que ele se enfiava pensando em resgatá-lo para o convívio social no parquinho da pré-escola. Cheguei perto, já ia me apresentar e convidá-lo pro gira-gira, mas espiei os desenhos antes de falar e me vi desenhada em vários rabiscos de giz de cera nas folhas de sulfite. E eram todos tão surpreendentes que o meu único impulso foi roubar uma das folhas, sair correndo e mostrar pra professora…


– Annnnnnnn! Que lindo!
– …
– Qual o seu nome mesmo!?
– … Kevin… Por que?
– Nada não… Já venho!
– Eeei, meu desenho! Me devolve!
– Professora! Professora! Olha isso! Olha que lindo que o Kevin fez! Olha, professora! Duvido que a senhora já tenha dado aula pra alguma criança que desenha bonito desse jeito! Olha! Olha, professora!

E ela não olhava… Estava ocupada corrigindo as provas da turma dos mais velhos…

Roxo de vergonha, ele veio até mim, pegou o desenho de volta, pediu que eu prometesse nunca mais fazer aquilo e se tornou meu melhor amiguinho de escola. Passei os dez anos seguintes não cumprindo a promessa, mas ele me perdoava… Dizia que era fácil enxergarmos talento em quem a gente ama e ignorava o fato de que tentei mostrar os desenhos dele para o “deus” do nosso pequeno mundo, antes mesmo de saber pronunciar seu nome.

Kevin era brilhante não só desenhando, mas com tudo o que tocava. Desenhava com o coração, escrevia pra pedir perdão, me fazia ouvir som de gaita como se fosse possível traduzir em palavras o que cada dedilhada dizia. E achava que não fazia nada de especial, mesmo quando era capaz de modelar suas piores más intenções em pedaços de Durepox, só para fazer alguém sorrir…

Acho que tanto falei, tanto admirei, tanto mostrei que um dia ele acordou e acreditou que tinha pelo menos um grande talento. Deixou pra lá os desenhos, as telas, entrou como quem não quer nada em um concurso de fotografia e o ganhou com uma foto que fez a faculdade inteira o aplaudir de pé. Naquele dia, ele parou de brincar e virou fotógrafo. Foi um sucesso tão absurdo que ele dizia que havia se descoberto talentoso como quem acha uma caixinha mágica e não quer mais parar de abri-la. Toda a alma exposta nos desenhos depois de horas de dedicação, ele buscava na fração dos segundos das fotografias… Toda a delicadeza que os traços lhe davam, o enrijeciam com química, êxtase e insatisfação com os resultados no laboratório fotográfico. E ele mudou… Parou de sorrir enquanto criava, passou a buscar perfeição e aceitação.

Com o passar dos anos era como se ele tivesse exercitado tanto a sensibilidade que passou a ignorá-la ou explorá-la. E eu olhava e via claramente que era vício… Que tudo que se faz em excesso para gozar ou comer, deixa lentamente de ser uma caixinha mágica pra se tornar qualquer coisa oca e confusa feito nossa própria cova. No final, olhar pra ele ou suas obras me dava sempre um sentimento de que um dia foi de verdade, um dia ele chorou, sorriu, pintou, fotografou e escreveu pela simples necessidade de transformar as emoções… Um dia, houve uma alma que era tão grande, tão grande que lhe escapou pelos olhos, mas podia ser sentida até sobre os poros. Um dia, alguém – assim como eu – gostou tanto, tanto do que viu que achou que o conhecesse há séculos e que suas fotos podiam atravessar os próximos…

– É isso! Finalmente o que eu sinto vai parar de bater somente dentro de mim!
– Nunca bateu somente dentro de você… O volume sempre foi alto demais. Ela teria que ser muito surda pra não ouvir…
– Mas agora todos vão ver quem eu sou!
– O que você é?
– Tudo o que eu sinto… Vejo…
– Você não é mais o que você sente… Você virou o que você quer, não o que sente.
– O que eu quero e sinto é o que faz de mim quem eu sou.
– É por você ou é pelo que você sente?
– Eu só quero que todos vejam! Pode parecer vaidade, mas não é uma coisa ruim. Você está falando como se fosse ruim querer ser reconhecido.
– Qual o preço que você vai ter que pagar pra seguir o caminho desse reconhecimento?
– Eu pagar!? Não! É a primeira vez que vou receber de verdade!
– Qual o preço que você vai ter que pagar?
– Você não entende…
– Qual o preço que terá que pagar?

– Não dá pra viver vendendo tela de pintura…
– Eu nunca disse pra você deixar de fotografar pra viver do que pinta…
– Com fotografia dá pra eu me manter…
– É pra manter você ou é pra manter o que você sente?
– Eu quero mais do que isso…
– E o que você quer?
– …
– É disso que você precisa?
– …
– Sabe o que eu sinto? Quando te vejo pintar é como se estivéssemos novamente no parque da escola… Você dizia que pelo meu sorriso dava pra saber o quanto eu gostava do que você fazia. Mas a verdade é que mesmo gostando de medir minha opinião através dos meus sorrisos, só um sorriso bastava para transformar tudo o que explodia dentro de você em arte… O seu! O sorriso de satisfação que você ainda dá quando começa e quando acaba uma tela. Aquele, quase de orgasmo, que te dá a sensação de missão cumprida depois de acertar todos os detalhes e ver diante de você todo o turbilhão de pensamentos que antes batiam somente no seu peito, transbordando no papel. Esse sorriso não precisa ser o único, mas deveria ser o único a determinar o que precisa ser feito. Se é essa a sua arte, só o seu sorriso importa, mesmo se ninguém quiser ver, mesmo se todos mostrarem a língua pra você.
– Eu não quero ver sozinho…
– Fotografar nunca te fez feliz…
– Mas faz as pessoas pensarem…
– Te faz bem? Te traz qualquer tipo de realização, além de ser reconhecido?
– …
– Todo artista sempre será o primeiro espectador de sua obra… Se você não se tornar fã ou nem sequer sentir algum tipo de bem estar pelo que fez, vai adiantar ser aplaudido por outras pessoas?
– Desculpa… Eu preciso trabalhar…
– Ok.

E lhe pagaram o almoço, a janta, roupas novas, carros possantes, um lindo apartamento no topo do mundo, uma passagem aérea que o levou para bem longe dos sonhos de garoto sonhados no parquinho da pré-escola… E eram tantas pessoas e tantos lugares e tantas perguntas com respostas reticentes, tanta distração o distanciando do que realmente importava que – mesmo sem ter deixado nenhum bilhete – tenho certeza absoluta de que foi assim que ele perdeu de vista a própria alma.

Também foi assim que eu o vi partir… Sem nunca ter sido um simples e grande pintor que sorria diante de suas telas, ou o cara comum que saia para fotografar o pôr do sol com os amigos, mas depois de ter se tornado um grande fotógrafo e se jogado do décimo segundo andar de um prédio de luxo, sem nenhum porta-retrato na estante, mas repleto de obras de arte nas paredes.



Escrito pela Alê Félix
7, fevereiro, 2012
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