Saíamos do carro e a minha vontade era a de sair correndo, brincando, pulando dentro do carrinho do supermercado, mas eu ficava quieta. O acordo entre eu e meu pai era que, se eu me comportasse, poderia escolher algum presente no final das compras. Era só o que me fazia obedecer, não vou mentir depois de velha. Com a maior cara de pau, eu dava a mão pra não morrer atropelada enquanto cruzávamos o estacionamento, olhava para um lado e para o outro como  sempre eles me pediam e normalmente eu esquecia de fazer. Entrávamos pela porta principal, a porta de vidro se fechava e finalmente… voilà! Eu estava livre pra correr e brincar a vontade, contanto que não causasse nenhuma confusão!

Naquele dia, não quis entrar no carrinho nem muito menos ficar sentada naquela cadeirinha ridícula feita para bebês medrosos e sem a noção correta das alegrias de cada um daqueles corredores. Passei um tempo olhando a quantidade de flores diferentes que eram expostas na porta de entrada, tirei o dedo quando me pediram pra não mexer nas plantas mais exóticas e atravessei a seção de frutas e legumes sem muito interesse, apesar de gostar das cores. Ignorei a parte do arroz com feijão que só interessava aos meus pais, pensei em levar para o carrinho uma novidade de biscoito que tinha visto na televisão e ouvi minha mãe dizer – já um pouco distante – que não era pra eu me afastar muito.

Aquele era um dos passeios mensais mais divertidos que fazíamos em família e nem me venham dizer que era só porque éramos uma dessas famílias que acha que alimento é amor (embora realmente sejamos uma dessas)!

Quando se nasce em um bairro muito pequeno e muito pobre, ir mensalmente fazer a compra do mês em um SUPERmercado (e de carro!), ao invés de pegar fiado no mercadinho do seu Joaquim, já seria algo grandioso por si só, mas também tinha a questão do espaço, que era o que mais me fascinava. Talvez pela segurança da época, ali meus pais me deixavam solta e, sentindo medo de me perder deles, aproveitava cada momento de liberdade.

Eu devia ter uns cinco, seis anos de idade, no máximo. Minha irmã uns quatro, mas a diversão dela era ir na cadeirinha ridícula. A missão para os meus pais era a compra do mês, pra mim era desbravar a imensidão de novidades que eu poderia encontrar em cada metro quadrado daquele lugar gigantesco.  Podia correr, rodopiar estrelas (eu só girava nos corredores vazios), me esconder embaixo das gôndolas na seção das roupas, subir no carrinho de compras enquanto minha mãe não o enchia…

Normalmente eu nem via o tempo passar mas, naquele dia, nem tudo aconteceu como de costume.

Lembro de ter ficado entretida com uns peixes de aquário na seção voltada para animais de estimação e, quando voltei para a direção que meus pais deveriam estar… Cadê eles? Procurei num canto, no outro, embaixo das prateleiras, entre uma roupa e outra, nos corredores mais prováveis, estiquei o pescoço pra enxergar caixa por caixa e, de repente, me dei conta de que estava perdida.

Senti as pernas bambearem, os ombros contraírem, a barriga tremer. Um aperto no peito que parecia me roubar o ar… Uma porção de lágrimas empoçaram nos meus olhos e senti a minha boca cerrar num medo tão grande que – qualquer um que me visse – provavelmente morreria de pena de mim. Sabe rostinho de criança sentida, perdida e que está prestes a chorar aqueles choros que parecem tão honestos que nenhum abraço parece capaz de consolar?

Eu nunca havia me perdido… E que sensação ruim imaginar que “perdida” significava ter perdido pai, mãe, irmãzinha rídicula, irmão caçula que havia ficado com a minha vó, irmão que se tornaria o caçula e que eu estava brigando pra escolher o nome, minha vó brava, minha vó das flores, meu avô contador de histórias, meu avô cheiroso, minhas tias malas, meus tios que me levavam na garupa da bicicleta, minha cama, meus cadernos, as meninas que pulavam corda comigo na rua, minha tia Maria que me dava aula na escolinha e me acalmava conversando sempre que eu sentia muito medo do desconhecido… “Me perder” era perder de vista as pessoas que eu amava ou não ter nunca mais como reencontrá-las. “Me perder” seria ser obrigada a construir um novo caminho de sobrevivência, não ter como voltar para a rotina que conhecia e não agredia meu espírito. “Me perder” seria ter que crescer sozinha no mundo e aquela era uma sensação de desamparo que me engolia de dentro pra fora, me fazia sentir como se eu fosse a criancinha bocó de algum filme de terror ruim.

Já entrando em desespero, comecei a pensar as mais trágicas desgraças que eram possíveis de se passarem pela cabeça de uma criancinha bocó!

* Eu não podia dizer a nenhum desconhecido que estava perdida pois ele veria que eu era aparentemente uma criancinha idiota e me levaria para um laboratório aonde eram extraídos cérebros de criancinhas idiotas.

* Eu seria levada pra uma casa de gente ruim que bate e obriga crianças a venderem coisas no farol.

* Na casa de gente ruim, alguém bem ruim extrairia o meu cérebro até eu ficar com a cabeça deformada, partida no meio até o queixo e recebendo três vezes mais pelas balas vendidas no farol.

* Eu viveria pra sempre sozinha pelas ruas e arredores do supermercado, teria que encontrar vassouras e cobertores pra improvisar uma cabaninha habitável até me tornar gente grande. Até o dia que eu seria bem grande, a maior do mundo e construisse uma nave espacial que resgatasse crianças das casas de gente ruim.

* Na minha nave espacial, todo mundo poderia tomar a minha fórmula mágica para ser encontrado pelos pais, pelos amigos ou poderia entrar na minha máquina do tempo e voltar para o segundo anterior que nos faz não ouvir nada a nossa volta e se afastar das nossas pessoas.

Uma moça se aproximou de mim perguntando aonde estavam os meus pais, mas eu corri. Quem me garantiria que ela não era uma das sequestradoras oficiais das casas de gente ruim?

Comecei a chorar pra valer quando lembrei que eu ainda não havia decorado o endereço de casa, nem o telefone do trabalho do meu pai e toda a minha vida estava arruinada pra sempre porque eu havia enterrado a caixa nova de bijouterias (parecia um baú de pirata, era fundamental que fosse enterrada!) da minha mãe no quintal e nunca mais ela a acharia, nem me perdoaria por ter desaparecido com tudo o que pra ela era tão valioso…

Nunca, nunca mais eu seria feliz, nem brincaria na rua, nem dormiria no quentinho, nem nunca mais ganharia nada do meu pai no final das compras, nem nada… Nunca mais tudo!

– Como é o seu nome, menina?
– …

Óbvio que eu não ia dizer nada! E nem era porque ele tinha cara de gente ruim, era só porque eu não conseguia parar de chorar mesmo…

– O gato comeu sua língua? Ok, não quer falar não fala. Vai que você é uma garotinha muda, não é mesmo?

Tive vontade de gritar que eu não era uma muda coisa nenhuma, de morder a canela dele, mas ele foi mais rápido…

– Prezados senhores, tem uma menina perdida e chorando sem parar embaixo da prateleira dos novos brinquedos, seção oito, comendo um pacote de biscoito. Pai e mãe, favor virem buscá-la.

Nem precisei morder aquela canela esturricada, embora tenha sentido vontade de fazê-lo engolir aquele microfone… Só não fiz isso porque nada, nada é mais reconfortante do que ver a cara do pai e da mãe da gente, de qualquer gente que pra nós é gente boa, depois de termos nos afastado tanto.

Depois desse dia, me perdi mais uma meia dúzia de vezes, mas por algum motivo a vez seguinte sempre era mais fácil de lidar e encontrar do que a anterior. De vez em quando, eu me perguntava porque é que eu continuava arriscando ir pra longe, se a possibilidade de me perder estava sempre nessa direção… Mas eram só pensamentos que passavam e nunca que me impediram de seguir a diante.

Não tenho mais cinco anos,  mas toda vez que me sinto sozinha, toda vez que me sinto uma pessoa menor do que o resto da humanidade, é como se eu ainda fosse incapaz de voltar pra casa e ter meu mundo de volta. Nessas horas, por maior que eu já seja, é como se o supermercado agora fosse o mundo e, chorar sentida embaixo de algum lugar quentinho, ainda fosse minha única salvação.



Postado por:Alê Félix
11/05/2011
6 Comentários
Compartilhe
gravatar

Juliane

maio 11th, 2011 às 14:46

adoro seus posts!


gravatar

Marina Misiara

maio 11th, 2011 às 17:13

Já senti isso. Também cherei mas pouquinho. 🙂


gravatar

carolina

maio 18th, 2011 às 18:36

olá ale nossa adorei seus posts estamos estudando na escola sobre seu blog não é demais?
bjoos


gravatar

Gabrielly

maio 28th, 2011 às 13:15

Adorei esses posts aquele post meninas mas esta no meu livro estamos estudando sobre ele! bjs


gravatar

stephanie

maio 30th, 2011 às 17:02

oi,eu só li um post seu o que está no meu livro mas adorei….


gravatar

stephanie

maio 30th, 2011 às 17:03

olhá só gabrielly está estudando o mesmo q eu, meu livro tbm tem o seu post eu amei.


Deixe um comentário