Fui a moça cabeluda da foto, a que está envolvida pelos braços do Gil, o moço bonito de regata vermelha. O moço brincalhão de batom e lenço na cabeça é o Renato, que reencontrei depois de muitos anos e me presenteou com algumas das fotos do nosso passado.

O Gil, o moço bonito agarrado a minha cintura, foi o meu primeiro namorado sério e o primeiro que me fez ter a certeza de que o amor seria – pra mim – o sentimento das “primeiras vistas”, das experiências intuitivas, da fé, independentemente de qualquer fim que tivéssemos.

O conheci antes dele me conhecer, só de observá-lo passando de um lado para o outro da escola e arrancando suspiros de todas as moças que o admiravam pela beleza e a fama de misterioso que, na verdade, era somente timidez. Eu também suspirava, mas não era só por achá-lo bonito e sim pela já anunciada intuição de um amor que poderia vir a sentir.

Alguma coisa dentro de mim me dizia que um dia ele viria até mim, me daria um beijo e se tornaria o primeiro grande amor da minha vida. E, tanto não era aquele um pensamento sem cabimento que, mais ou menos um ano depois de eu saber que ele existia, ele também passou a acreditar…

Eu estava ajudando na organização do festival de música da escola, as bandas ainda não estavam prontas para se apresentarem e eu respondia perguntas mais do que respirava até que, houve um momento que precisei me afastar do burburinho. Parei próxima ao portão de saída e vi que ele havia saído do colégio pouco depois de mim. Se aproximou com um sorriso discreto, mas que era impossível não sorrir de volta. Como se ele me conhecesse há anos, parou ao meu lado e disse…

– Você já viu um escorpião no céu?

Lembro de ter ouvido a pergunta, olhado para aqueles enormes olhos azuis e quase flutuado por alguns instantes enquanto sentia uma de suas mãos tocando levemente a minha cintura e direcionando meu corpo para que eu me deixasse guiar pelas indicações da outra mão.  Sem dizer mais nada, conduziu meu olhar com o dedo indicador e pontilhou o céu estrela por estrela, como se estivesse desenhando um escorpião no meio daquela escuridão de outono.

Olhei novamente pra ele toda feliz ao ver a constelação e, numa fração de segundos, para a minha total surpresa, antes que eu sequer tivesse tempo para dizer “muito prazer, meu nome é Ale”, ele…

– Tchau… Um dia a gente se vê.

Nas semanas seguintes, a única informação que consegui sobre o paradeiro do rapaz era que havia mudado de turma, de horário e desaparecido das aulas por um tempo.

Pensei no Gil por semanas, parei de contar a história do escorpião pela décima nona vez para as minhas amigas, parei de me perguntar como faria para encontrá-lo novamente, parei com tudo. Parei e, num dos dias mais frios daquele ano, ele apareceu novamente…

Já era inverno, eu tinha acabado de socorrer uma amiga de dentro da caixa d’ água da escola e estava completamente molhada, tremendo de frio, sem ter muito o que fazer além de correr pra casa. Passei pelo portão em direção a rua e vi o meu menino de olhos azuis entrar pelo portão principal, vir em minha direção de braços abertos, passos largos, com um sorriso tão escancarado de saudade que minha única reação foi correr ao seu encontro e retribuir o abraço que ele me oferecia. Podia parecer desculpa, mas eu estava realmente com frio, não dava pra me desvencilhar daqueles braços.

Depois de horas abraçados sem dizer muita coisa, sem quase precisar dizer nada, ele nunca mais desapareceu. Eu lembro de ter dito…

– Meu nome é Alê…

E ele sorrir e dizer…

– Eu sei…

Todo santo dia ele me esperava no final da aula, ia comigo até o ponto de ônibus e me agarrava tão forte pela cintura que me fazia perder meia dúzia de ônibus certos, toda santa noite.

Vivíamos uma época de regras claras, roteiros de relacionamentos bem definidos onde os meninos pediam em namoro e as meninas respiravam aliviadas por não precisarem alimentar inseguranças, nem nada que as fizessem se sentir experimentas e descartadas ou experimentadas conforme as conveniências de ambos. Eram namoros de paz, ingenuidade, de andar de mãos dadas. Mesmo assim, ao lado dele, esqueci totalmente das regras do jogo…

Pra dizer a verdade, era tão bom estar apaixonada por aquele moço lindo, que enchia meu ego de segurança, que as palavras por muito tempo realmente não se fizeram necessárias. Depois, com o tempo, como ele nunca havia me dado a formalidade dos namoros normais, uma porção de dúvidas passaram a se formar na minha cabeça e, todas as coisas boas que tínhamos juntos, a partir dali começaram a deixar de ser.

Amigas, ele tinha aos montes… Quem me garantiria que eu não era só mais uma? Carinhoso, ele era até com os irmãos… Quem me garantiria que eu não era só mais um querer bem?

Eu tinha quinze anos, ele dezessete. Ele tinha acabado de arranjar um emprego, eu comecei a me envolver com movimento estudantil. Eu apaixonada, ele aparentemente apaixonado mas, diante da dúvida, um dia em um congresso do movimento estudantil, conheci o André…

André era um cara brilhante, um garoto de dezoito anos que falava feito presidente da república e que no futuro destruiria muitas das minhas crenças, minhas regras de relacionamento e os meus três primeiros namoros sérios. E, infelizmente, o Gil foi o primeiro moço que perdi graças ao julgamento nebuloso que eu tinha sobre meus sentimentos com relação ao André…

Voltei do Congresso com ele na cabeça e o Gil no coração. Não, eu não fiquei com o André no Congresso, de forma alguma. Mas, assim como a minha intuição um dia me contou da importância do Gil, também me contou da do André.

O namoro com o Gil se fortalecia através do tesão e a minha confusão com o André através da admiração. O Gil eu beijava, o André eu escutava. Passava horas conversando com um e achava uma delícia quase transar sem tirar a roupa com o outro. Enquanto o André me confundia e fazia pensar, eu acalmava meu corpo vendo o Gil quase me tocar e sempre recuar, me amar e ter medo de confessar.

Eu sonhava com o Gil entrando escondido pela janela do meu quarto, dormindo sem roupa ao meu lado e desaparecendo no meio da noite, como se pudéssemos mover nosso desejo através de encantos. E, mesmo com tanta vontade, nunca dormimos, nunca acordamos…

A primavera foi embora e levou com ela todo o suor que derramamos exercitando nossa imaginação e o tesão que poderíamos sentir um pelo outro. Durante o verão, comecei novamente a me perguntar porque ele nunca havia me pedido em namoro, feito toda a corte que era comum entre os outros meninos. Morri de ciúme ao ver ele correr pra abraçar um amiga, do mesmo jeito que um dia ele havia feito comigo. Chorei dias seguidos em um fim de semana que ele me deixou ir embora sozinha e não me acompanhou até o ponto de ônibus, só pra conversar um pouco mais com a maldita da amiga. E me enchi de insegurança a tal ponto que voltei a olhar para o André com curiosidade, a respirar política ao invés da ideia de transar pela primeira vez. Passei a me perguntar o que é que eu realmente queria da minha vida, do meu futuro, do meu namoro com o Gil.

No dia de Natal, no mesmo dia que essa foto foi tirada, ele me disse que gostava (não disse que amava) de mim pra casar, que queria ter filhos comigo, que estava pensando em me dar uma câmera fotográfica para que eu pudesse estudar e me tornar a fotógrafa que andava comentando querer ser.

Estávamos a caminho da minha casa e eu fiquei em silêncio o percurso inteiro pensando no que ele havia dito e no último discurso que o André havia feito em um encontro de estudantes secundaristas. Gil puxou outro assunto, eu disfarcei o silêncio, tirei o André da minha testa e desabafei…

–  Preciso de um tempo. Preciso de espaço, preciso descobrir quem eu sou…

Sabe todas as desculpas esfarrapadas que damos quando não conseguimos dizer a verdade?

Passei anos sem ver o Gil e, lá pelos meus dezenove anos, passei a odiar o fato de ter terminado com o Gil, com o Cadu (segundo namorado sério) e com o Edu (terceiro namorado sério), sempre por causa do André, dono de uma personalidade que me confundia tanto que só fui capaz de compreender depois de muito, muito tempo.

Hoje, ao ver essa foto, a primeira lembrança que tive foi a do motivo real do porque terminei com o Gil. Uma triste verdade que nunca confessei pra ele e nem mesmo pra mim. Pra ele eu disse que precisava de um tempo sozinha, pra mim eu disse que precisava crescer, virar gente, ouvir “eu te amo” sem medo, transar antes de casar e provavelmente não ter filhos.

Mas afinal, o que eu devia ter dito? A verdade. Devia tê-lo libertado ao invés de amarrado – por meses – a espera de que um dia nos encontrássemos e o meu tempo necessário já tivesse passado. Devia ter dito que eu estava terminando porque gostava ou achava que gostava do André. Era só isso que ele merecia ter ouvido para seguir em frente, em paz e sem ilusões.

Eu virei fotógrafa, ele saiu da casa dos pais muito jovem e pagou um preço muito alto por isso. Eu mudei de turma, ele se isolou completamente. De vez em quando sentia saudade de beijá-lo, mas passava sempre que o André discursava, me convencia e me chamava para socorrê-lo emocionalmente das merdas que vivia se metendo com mulheres e pessoas erradas.  Sempre que isso acontecia, eu esquecia de um e permitia que o outro continuasse invadindo meus pensamentos e estragasse meus bons relacionamentos.

Muitos anos depois, quando soube tudo o que o Gil passou depois que terminamos, senti uma vontade imensa de voltar no tempo e dar um tapa bem forte na minha cara. Um tapa que me obrigasse a ser menos egoísta e confessasse que eu estava cega por um e insegura com o outro. Eu sei que não tenho como voltar atrás, mas sinto muita vergonha de ter omitido a verdade e achado melhor ser a garotinha confusa que aprisionou uma alma só para o caso de tudo ter dar errado com o André ou com o meu futuro. Além dos arrependimentos, sem a influência do André e das confusões da adolescência, restou a saudade e uma leve tristeza por não ter dado ao meu primeiro namorado, todas as minhas primeiras e melhores descobertas.

Talvez, amar seja o doloroso exercício de confessar todas as nossas verdades.

PS – Obrigada pelo amor de uma vida inteira, mesmo que eu nunca tenha merecido, mesmo que a gente nunca tenha dito “eu te amo”.



Postado por:Alê Félix
10/05/2011
1 Comentários
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Laura

maio 10th, 2011 às 17:39

Nossa, como é bom ler um texto com que a gente se identifica muito. Sempre leio seus posts, mas esse me impressionou, pois fiz exatamente a mesma coisa que você: aprisionei uma alma sem falar a verdade. Dizia que estava confusa, mas na verdade só queria viver minha vida. Isso durou um ano. Graças a Deus passou. Parabéns, otimo post.


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