Tô no Rio de Janeiro desde ontem. Minha irmã também está aqui… Eu digo que vim a trabalho, ela realmente está a trabalho. Eu venho quando meu coração pede e ela vem porque precisa, só volta para casa nos fins de semana. Agora ela está ali na cama… Acabou de virar de lado novamente, parou o ronco baixo, ligou o ar condicionado. Deve ter despertado quando viu que eu liguei o notebook depois de me revirar por horas nessa cama. Aposto que me viu de calcinha, sentada, digitando as duas da manhã e voltou no tempo “você vai dormir por bem ou por congelamento!”. Aposto e ganho que foi isso. Não está uma noite quente, ontem ela pediu na recepção do flat uma coberta a mais e agora liga o ar. Acho que não dividimos o mesmo quarto há um século… E como é difícil!
A gente nunca se deu muito bem, sabe? Depois que eu cresci tentei reparar as merdas que fiz na infância e na adolescência, mas não teve muito jeito. Tem uns dez anos que convidei ela para almoçar e conversar. Só nós duas na mesa, pedi desculpas por não ter sido a irmã que ela queria ter tido. Eu sabia que não dava atenção a ela, que a ignorava… Ela disse que me adorava, que me achava a irmã mais foda do mundo, que foi realmente muito triste nunca ter conseguido brincar comigo e depois ter aprendido a brigar tanto. E que durante muito tempo ela sentiu por isso tudo, que as desculpas eram bem-vindas mesmo sabendo que naquela época eu também era uma criança. Quando adolescentes foi pior… Nos tornamos mulheres diferentes, com gostos opostos, opiniões e atitudes que só faziam com que nos afastássemos cada vez mais e mais. Acho que quando eu saí de casa ela deve ter se sentido aliviada… Não sei, mas acho que foi assim. Afinal, quarto só dela, roupas que ela não precisaria esconder de mim, nossos pais mais livres para olhar para as necessidades dos outros filhos, noites que ela poderia dormir sem que eu a acordasse com meus hábitos notívagos. Só depois de alguns anos morando longe dela, que consegui olhar direito para quem ela era. Olhar assim, olhar com carinho de irmã como estou olhando ontem e hoje, embora dessa vez seja pela proximidade que esses dias no Rio estão trazendo…
Ela sempre quis ter filhos, eu jamais. Ela teve meu sobrinho, eu jamais. Ela sempre foi uma funcionária exemplar, trabalhou nas melhores empresas, construiu uma carreira onde hoje ela é disputada a tapa. Confiante, bonita, segura, secretamente triste… Em algum lugar naquele olhar eu sinto o quanto ela triste. E até hoje eu acho que é comigo, que é culpa minha por não ter sido a irmã-amiga que poderia ter sido se eu não fosse tão ciumenta, egoísta e arrogante. Só pode ter sido ciúmes meu, sabe? Eu tinha quatro anos quando ela nasceu, meu pai a adorava e, a mim, não de forma tão aparente. Perdi meu pai e ela quando decidi que não gostava mais de nenhum dos dois. E não era verdade… É possível que fosse exatamente o contrário, mas usei os anos seguintes para me convencer de que o problema eram eles e não eu.
Agora ela está ali roncando… A gente ronca. É uma merda, mas a gente ronca. A família inteira ronca, mas ela diz que ela não. Ela acha que é loira, eu sempre fui morena. Ela só sente prazer quando os homens rastejam, meu prazer é meu prazer. Ela tem traços muito mais delicados, tem uma gargalha que faz o mundo parar e que eu morro de inveja, canta bem pra caralho e eu babo quando vejo ela pegar no microfone. Ela sabe se vestir muito melhor do que eu e, de vez em quando, me faz chorar como poucas pessoas conseguem. É, é uma merda…
Vim para o Rio pensando – como sempre – no quanto eu viveria bem aqui. Ela – hoje – não via a hora de voltar para São Paulo, ver o filho, ver os amigos e sentir o cheiro da cama que a faz se sentir em casa. Aí eu lembro do pessoal lá de casa… Da casa que há anos não é mais minha, mas que eu ainda chamo de minha. A casa de minha mãe, meu pai, a casa onde mora meu irmão caçula, meu sobrinho e ela. E que é visitada religiosamente por mim e meu outro irmão. A casa simples, de quintal, de cozinha, de bairro, de quartos puxadinhos, de almoço na mesa. A casa que minhas tias têm como extensão da casa delas, que meus avós correm quando precisam de ajuda, que todo mundo corre quando precisa de família. Aí – nessas horas – por mais avesso que a gente tenha se tornado uma da outra, vejo o quanto a gente é igual, vejo porque para mim viver longe de São Paulo é só exercício da minha imaginação. Por mais que eu voe solta e sorridente pelo mundo, sou família tanto quanto ela, sou lá dá casa de meus pais, também morreria de saudade do meu sobrinho se não pudesse vê-lo sempre. Por mais distante que a gente tenha se tornado, por mais difícil que seja lidar com as diferenças, por mais que ela queira me ver resfriada amanhã de manhã… Deus meu, como eu gosto dessa vaca.



Postado por:Alê Félix
26/09/2008
1 Comentários
Compartilhe
gravatar

ana marisa

setembro 21st, 2011 às 16:53

Que bom…poder ler seus textos novamente…Perdi seu contato na internet há muito tempo…amo seus textos…


Deixe um comentário