Na época que eu morava com os meus pais, mudou pra casa da frente um casal que tinha uma filha adotada. Tietita (era o apelido dela) sabia, todo mundo sabia, tinham todos uma relação tranquila quanto a adoção. Mais velha que eu alguns anos, menina tranquila, sorridente, boa criatura, contanto que não fosse mês de setembro.
Poís é… Inexplicavelmente, uma vez por ano ela entrava numa profunda tristeza, não queria mais sair de casa, brigava com os pais, com os amigos, com deus e o mundo. Chorava, trancava as portas, não atendia, fugia da escola e da luz do dia se fosse obrigada a sair. A gente insistia, perguntava o que estava acontecendo e ela só sabia chorar e dizer que não sabia.
Não sei porque eu sou assim, mas desde pequena eu costumo encanar com coisas aparentemente ignoráveis e criar uma série de explicações que – pelo menos na minha cabeça – façam sentido. E foi assim que depois de alguns anos de amizade percebi que havia algo que se repetia além do “não sei” daqueles surtos de tristeza.
Não era maluquice minha… Todos eles aconteciam no mês de setembro! Todos. Sério! As vezes começava pouquinho antes, mais pro meio do mês, outras no final, mas sempre na mesma época.
Achei de verdade que aquilo devia fazer algum sentido, estar relacionado há algo que talvez até ela desconhecesse. Inquieta, acabei perguntando pra mãe dela se eles sabiam o dia certo do nascimento da Tietita…
– A gente conheceu a tia dela. Ela nasceu no dia 03 de janeiro mesmo.
– Hum…
– Por que?
– Curiosidade. Estava me perguntando se ela havia nascido nesse dia mesmo ou se vocês comemoravam o dia da chegada dela.
– Não… Ela chegou pra nós em novembro, dia 01.
– Hum… Ô tia, curiosidade, por que é que ela nasceu em janeiro e vocês só a conheceram em novembro?
– Não sei… Não quisemos saber. Sabiamos que a família não tinha condições de criar e deixamos pra lá. Tietita quando cresceu também não quis saber, então tocamos em frente.
– Ahh… Ô tia, uma coisa, a senhora já percebeu que um vez por ano a Tietita fica bem triste, não percebeu? Ela não fica triste vez ou outra. Acontece de ficar bem triste uma vez por ano. A senhora já reparou, né?
– Fica triste normal, ué!
– Não é não, tia! É uma vez por ano. E é sempre mês de setembro.
– Mas você é danada de maluca, né menina!?
– Tô maluca não! Pode reparar. Que mês nós estamos? Ano passado foi perto da época que o meu irmão quebrou o braço e eu sei que foi setembro porque ele quebrou o braço no dia do nascimento do meu primo Felipe. Ano retrasado foi pouco depois de uma discussão que eu tive com ela sobre pessoas do signo de virgem e a discussão começou por causa de uma revistinha que falava do signo do mês. Passei dias achando que ela estava brava comigo e que estava mentindo quando dizia que não era nada. No ano anterior a esse, também foi no começo de setembro. Foî na festa de um ano de casa nova que vocês deram, lembra? E vocês se mudaram no final de agosto porque eu lembro… Não sei porque lembro, mas lembro. Tenho certeza!
Óbvio que ela me botou pra correr da casa dela… O assunto morreu ali e eu tratei de esquecer.
Algum tempo depois o pai da Tietita foi transferido e eles precisaram mudar novamente de casa. Nunca mais tive notícias.
Curiosamente, nesse fim de semana, acordei cedo e fui tomar café da manhã na casa dos meus pais. Estávamos conversando no quintal quando a campainha tocou e vimos pelas grades do portão a Tietita, dois molequinhos e um senhor. Anos depois, depois de mais de uma década de histórias contadas, lá estava minha vizinha e eu conversando enquanto as crianças brincavam, o marido ajudava meu pai no churrasco e um atleta – depois de ter ganho uma porção de medalhas em Olimpiadas – dizia na TV que…
“Quando eu era pequeno uma professora me disse que eu nunca teria sucesso na vida…”.
Eu e a Tietita interrompemos o papo por um minuto, ouvimos a declaração e em seguida me peguei pensando em voz alta e mudando totalmente o rumo da conversa…
– Quantas alegrias precisamos sentir pra esquecer um tanto de tristeza?
– Meia duzia de medalhas e o cara ainda fala da magoa da professora…
– Pois é… Quantas será que são necessárias pra ele apagar essa lembrança?
– Mas pode ter sido a lembrança que o levou as medalhas…
– Se uma frase infeliz pode levar alguém tão longe, imagina quanta tristeza move as pessoas o tempo todo.
– Pelo menos ele lembra… E eu que passei a vida inteira ficando triste perto da primavera e só soube o porquê quando meu segundo filho nasceu.
– Como assim!?
– Pois é… Depois que dei a luz ao Vitor conheci a irmã da minha mãe natural e ela me contou várias histórias. Você acredita que minha mãe estava de quatro meses de barriga quando meu pai morreu em um acidente de trabalho? O que se fizermos as contas, dá final de agosto, começo de setembro. Não bastasse isso, eu nasci em janeiro e minha mãe natural faleceu em setembro daquele mesmo ano. Um ano depois da morte do meu pai e sem explicação nenhuma! Os médicos disseram que foi de tristeza…
– Tristeza aparece em atestado de óbito? Não é possível!
– Ai eu já não sei…
– E aí? Quem ficou com você?
– Minha tia tentou me criar, mas ela era sozinha e, segundo ela, onze meses depois da morte da minha mãe morreu minha avó. Agosto! Em seguida, ela perdeu o emprego na casa da família que nos abrigava. Setembro!
– Uma atrás da outra…
– Sim… Pouco tempo depois da nossa sequência de “setembros trágicos”, ela achou melhor me deixar com meus pais de criação e aqui estou eu… Lembra quando a gente era pequena que eu ficava insuportável sempre que entrava o mês de setembro? Esquisito, né?
– Anram…
– Mas passou depois que soube dessas histórias… Nunca mais tive aquilo. Coincidentemente, Gabriel nasceu dia 02 de setembro e o Vitor 16 de setembro. Dá pra acreditar?
– Hum… Duas grandes medalhas que te fizeram superar cinco lembranças tristes. Você já pode dizer que é muito mais forte do que muito campeão olimpico. 🙂
– 🙂
Foi bom ver a Tietita em paz…
Também foi bom perceber porque desde a semana passada estou nessa apatia. Só não sei onde vou arranjar tanta medalha pra apagar tantos anos de luta sem sentido. Algumas coisas que fogem do que nos parece racional, são uma grandessissima merda… Sério.
E, confie em mim, se você conscientemente tem datas na sua cabeça associadas com momentos tristes, se esforce para fazer coisas boas nesses períodos. Uma hora a gente simplesmente deve esquecer. Até porque, não sei se há algo mais que possamos fazer além de observar histórias, aprender como se escreve e virar todas as páginas borradas de lágrima. Não sei se há e não sei quantos anos mais vou carregar minhas datas tristes na lembrança… Só sei que acabei de voltar de uma noitada num hospital com aquele pessoal dos doutores da alegria e tô aqui me perguntando o quanto de alegria ainda tenho a oferecer e quantas medalhas ainda posso ajudar alguém a ganhar. Porque é bom pra caralho ver gente que comemora o simples fato de estar vivo e junto com quem está junto. Definitivamente, é ao lado de gente assim que eu quero estar.



Postado por:Alê Félix
19/08/2008
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