Nao tenho o habito de me colocar em situacoes de risco nem vejo a menor graca em testar meu corpo em busca de adrenalina. Desdenho as pessoas que fazem esportes radicais e sempre achei que ha algo de suicida ou uma tristeza muito maior e mais disfarcada na alma daqueles escaladores de montanhas e outros caras que brincam de arriscar a vida em troca de uma boa vista, a desculpa de que estam protegidos com os melhores equipamentos e outras tantas que nunca me convenceram…
Comecei a viajar sozinha com quatorze anos de idade, depois de muitos argumentos e algumas mentiras que precisaram ser contadas para que meus pais liberassem minha ida para um congresso de movimento estudantil. Mais de dezesseis horas num trem ferrado e cheio de adolescentes metidos a adultos e cinco dias alojada numa universidade discutindo politica, comendo mal, dormindo bem, descobrindo quem eu era e quais seriam meus vicios prediletos. Nao suporto correr riscos, mas tambem nao suporto ficar parada vendo minha vida passar toda certinha e bonitinha igual a da cartilha que a maior parte de nós segue sem questionar, sabe? Igual a de todo mundo que nem sabe porque trabalha, para quem vive, pelo que sonha, por quem goza… Pra que uma casa propria? Por que casamos? Por que tantas compras? Pra que tanta economia? Por que é tao importante ter filhos? Por que trabalhamos com o que nao gostamos? Por que nos sujeitamos a uma vida que nao vale uma vida? Por que mentimos para nós mesmos mais do que mentimos para as outras pessoas? Por que eu nasci eu, com a minha vidinha facil paulistana e nao uma das criancas indigenas que se fodem subindo e descendo mulas para socorrer turistas fora de forma no Quilotoa? Por que elas tambem seguem a cartilha de suas tribos?
Conheci um cara super bonitinho que vive sozinho num casebre construido no alto de uma montanha que dá vista para o vulcao Tungurahua (vulcao ativo que em agosto do ano passado obrigou os moradores a evacuarem a cidade). Ele monitora o bicho, passa informacoes constantemente para um centro que é responsavel pela seguranca local, nao bebe, nao fuma, nao tem preocupacoes comuns… Vive um dia depois do outro, vem a Banos para comprar comida, livros, cds e – de vez em quando – tomar café na varanda da pousada que to hospedada só para ouvir outros idiomas… Estuda esperanto sozinho sem saber explicar o porque, vive sozinho porque diz que nasceu sozinho e vai morrer sozinho e que isso nao tem nada a ver com solidao. Diz ele que casou uma vez, que a historia durou tres anos e que eles se separaram porque se sentiam muito solitarios, nao conversavam… Tambem me disse que deus mora no silencio e que é possivel escuta-lo diante das montanhas.
Ontem, depois de tres horas de serras e paisagens que nunca mais sairao da minha cabeca, dei de cara com a Laguna del Quilotoa… Aos quatorze anos, quando cheguei na estacao da Luz e a vi tomada por uma multidao de estudantes cantando musicas do Legiao Urbana como se fossem hinos, lembro que aquela vista me fez sentir um troco no peito que nunca mais senti. Hoje, falando assim, parece ridiculo mas foi uma sensacao de liberdade que nunca havia sentido e que busquei em cada viagem absurda e em cada decisao da minha vida. Eu nao sei o que os alpinistas pensam, o que realmente é de verdade na boca do bonitinho do vulcao, o que o povo dos esportes radicais quer da vida se jogando de despenhadeiros amarrados por cordinhas mas, depois de lacrimejar diante da laguna de Quilotoa, descer aquele lugar pensando que aquele tanto de areia no caminho devia significar que aquilo um dia devia ter sido mar, chegar até o final querendo o tempo todo voltar pelo pavor de saber que ali um pedido de socorro seria uma mula, meter a lingua na agua e sentir gosto de sal… e de deus; acho que os compreendo.
Voltar, praticamente escalar aquelas paredes novamente, foi das coisas mais dificeis que fiz na vida. Pedi socorro na primeira hora de subida, senti o maior medo que ja senti ao subir na mula que parecia querer se jogar (ou me jogar) em cada curva dos despenhadeiros… Nao andei em cima dela nem dez metros. Desci, fiz o trajeto a pé. Descobri que confio fielmente na minha forca, mas nunca no meu equilibrio. Foram quatro horas subindo e dando voltas nas paredes do Quilotoa… Doeu. Foi bom.
Pouco antes do fim parei numas pedras onde uma senhora e uma garotinha olhavam a paisagem nebulosa do fim do dia. Luz, a senhora moradora da regiao, me contou que nao conseguia mais subir e descer a lagoa, mas que ia até onde seu corpo aguentava todos os dias… Porque ali ela se sentia livre, porque ali ela conversava com deus, porque a caminhada lhe fortalecia as pernas.
Feliz ano novo pra voces… Arrisquem. Arrisquem sempre que for possivel. Arrisquem novos caminhos, pensem diferente, pensem no que realmente querem fazer com os poucos anos que ganhamos de presente. A cartilha pode ser quentinha, mas as vezes sentir frio na barriga, gelo na espinha e arrepio na nuca é o que precisamos para nos sentirmos vivos.

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Escrito pela Alê Félix
31, dezembro, 2007
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Quatro horas de viagem num onibus chechelento, sem banheiro, com paradas frequentes e neguinho subindo e descendo vendendo de churrasquinho de gato a salada de fruta. Duas horas depois uma pirralha no banco de tras vomitou e eu olhei pra cara de uns gringos ao meu lado como que pedindo socorro… Eles retribuiram o olhar e tamparam o nariz com as maos. Um cheiro insuportavel e o onibus virando de um lado para o outro nas curvas de uma descida que parecia nao acabar nunca. Pensei “Me ferrei de novo. Esse lugar deve ser uma droga.”.
Eu preciso largar mao de ser mimada… Nasci numa familia super simples, cresci brincando com a molecada da favela, dei um ralo danado pra conseguir o pouco que tenho e mesmo assim ainda pareco uma babaca diante de lugares e pessoas muito pobres. As vezes, quando nessas horas sinto vontade de sair correndo pra um lugar quentinho e aromatizado, tambem sinto vergonha de mim mesma. Parece que de nada valeram as dificuldades que ja passei… Nao passo de uma mimadinha arrogante e mal acostumada com a sorte que tem. É tudo que sou, por mais que eu me esforce para ser alguem decente.
O Equador é um pais muito pobre… Parte o coracao andar pelas estradas. Banos é uma cidade turistica, geograficamente impressionante e acabei de chegar… La da estrada, através dos vidros trancados, vi um vulcao, vi os borrões cinzas dos fogos se misturarem aos branquinhos das nuvens que o atravessavam. Um vulcão não passa de um inferno suspenso pela saudade do céu.
Sinto falta das minhas pessoas…



Escrito pela Alê Félix
28, dezembro, 2007
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O “namorado simpaticao” vai ficar com boa parte das minhas memorias de Quito (memória da camera perdida com quase oitocentas fotos feitas na linha do Equador e na Basilica da Cidade Velha). Triste, triste… Perder fotografias assim dá uma tristeza estranha, um clima de velório terrivel. Parece que parte da viagem foi perdida, como se nunca tivesse existido. É muito estranho.
Indo agora para Banos… Nao tao feliz como estava ontem a noite, mas tentando nao esquecer que ainda tenho a camera, outro cartao de memoria e alguns pen-drives cheios de fotos. A viagem continua…



Escrito pela Alê Félix
28, dezembro, 2007
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Nao disse que Quito é como um namorado simpaticao? Mariscal é um bairro impossivel de ir embora. Nao sei o que fazer para terminar… Nem a ideia de ficar cara a cara com um vulcao em Banos tem feito mais a minha cabeca do que os passeios a pé pelas ruas da Cidade Velha e as noitadas aqui em Mariscal. O que mata é esse frio e as garoas que vao e vem… Se bem que agora, com a minha capa-equatoriana-poderosa-isis, nem os ventos do sul andam me assustando. Hoje subi nas torres de uma basilica que nem eu acreditei… Um labirinto vertical cheio de escadas e pontes bambas que pareciam dar a qualquer momento no quarto do conde dracula. Nao me machuquei, nem dei no quarto do dracula. Uma pena… Pelo dracula, obvio!
Ah! Tambem me escondi dentro daquele lugar onde o padre fica quando as pessoas se confessam. Confessionário! Lembrei. Uma senhora deve ter confundido minha capa equatoriana com alguma santidade papal e veio me contar suas travessuras. Fiz uma super-capsula imitando voz masculina e sai de la correndo antes que me prendessem tambem no Equador. Preciso parar com essas manias, mas quase sempre é irresistivel. Tomara que deus seja um cara bem humorado, senao terei que reencarnar na Venezuela. Ops. Jurei que não ia mais falar mal. Sorry.



Escrito pela Alê Félix
27, dezembro, 2007
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Deviam fazer um teleferico em Sao Paulo… La no pico do Jaragua, manja? Tem teleferico em tudo que é quanto é lugr aqui em cima da America do Sul. O de Quito é sensancional. Alem da vista e do preco das coisas (apesar da moeda oficial ser o dolar tudo é muito barato) os caras fizeram uma espécie de playcenter no pé do lugar. Me empolguei, pra variar, e desloquei meu ombro tentando ganhar bonequinhos aborigenes com um martelo gigante que na verdade precisava ser usado com tecnica e foco ao inves de forca (coisa que eu nem tenho). Fui parar novamente no pronto socorro. Acho que meu seguro saude nunca mais vai renovar contrato comigo… vao achar que eu tenho problema. Pior, nem ganhei o raio do bonequinho. :s
Quito é bem legal. É como aqueles namorados que ninguem sabe o que a gente viu nele, mas que depois de um tempo todos acham encantador. O povo é de uma simpatia absurda e fala de um jeito super tranquilo e compreensivel. Para minha alegria, todos ótimos de papo. A cidade é aparentemente bem organizada, com lugares muito charmosos e a noite as nuvens atravessam as ruas bem no nosso nariz e faz a gente se sentir em um filme.
Ontem, lá em Mital del Mundo onde passa a linha do Equador, fiz o melhor escambo da minha vida e troquei uma blusa de la da Renner por uma capa equatoriana sensacional. Fiz as mandingas do vagina-power que a Gabi me ensinou em cima da linha, adicionei umas rezas contra fertilidade (continuo nao querendo ter filhos), tomei um porre de chocolate quente com conhaque em homenagem ao Ju e ao Ju e andei em cima da linha sem balancar (muito) e ainda fiz um quatro bonitinho com as pernas. Acho que virei uma super heroina. Essa capa equatoriana e o vagina-power tem feito eu me sentir a Poderosa Isis. Será que se eu continuar assim vou querer conquistar o mundo? Bom, por enquanto, só a America do Sul e o exercito colombiano me bastam (voces precisam ver a farda dos guardinhas colombianos! E olha que eu nem tenho fetiche por essas coisas. Lindo! Sexy pra dedéu! Qualquer feioso dentro daquilo vira um belo de um C+).
Chega de papo furado… O ombro tá melhor e to indo agora pra uma cidade chamada Banos e depois Guayaquil. De la tenho que pensar em como chegar em Lima. Escrevo depois.
Beijim e até mais.



Escrito pela Alê Félix
27, dezembro, 2007
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Deve ser o conhaque ou o espirito natalino (embora essas coisas de espirito nunca tenham baixado em mim), mas precisava achar um micro antes de dormir e dizer que tenho falado muita bobagem, e que estava agora pouco bebendo, conversando, morrendo de frio e me arrependi horrores do que escrevi sobre a Venezuela. Em Cartagena, num momento de deslumbre do tipo “Olha! Carruagens! Cinderela!” fui atropelada por um cavalo que carregava uma galera que ia para um casamento. Carruagens sao comuns por la, os turistas passeiam o tempo todo nelas e a ridicula aqui teve a sorte de levar um chega pra la de uma que pertencia aos padrinhos de uma noiva. Fui parar num pronto socorro e, como o acidente foi mais susto do que ferimento, acabei a noite na festa do casorio. Mas o que eu queria dizer é que mesmo me ferrando com o atropelamento de carruagem em Cartagena, mesmo depois do cagaço das trocentas horas pra sair da fronteira, mesmo depois de descobrir que a droga da estrada que o perueiro pegou a maior parte da viagem era controlada pelas Farc e ele ter garantido que nao passaria pela tal da Cidade Perdida, mesmo pegando uma gripe lascada antes de ontem em Bogota, mesmo depois de uma porcao de coisas que vou lembrar aos poucos e com o tempo porque sou uma desmemoriada, quero voltar sempre para a Colombia. Nao ha nada de perigoso naquele país, alem da vontade de querer ficar mais. Serei para sempre uma apaixonada pela Colombia. E agora, chegando em Quito, estava conversando sobre as minhas impressoes sobre a Venezuela e lembrei que escrevi merda no post abaixo. Ignorem o que eu digo, eu estava num pessimo humor quando escrevi e tudo me parecia pior do que realmente tinha sido. Eu conheci muito pouco e muito rapidamente algumas cidades da Venezuela, tive o prazer de ser presa por tres horas no Palacio Miraflores e depois ainda conseguir nao só a camera fotografica de volta como tirar fotos com a boina do guarda que me prendeu. Fora outras situacoes e pessoas que nao dei o devido valor… Como dizia Fernandinho (um colombiano simpaticao que adora o Brasil e queria o tempo todo que eu falasse em portugues e nao em portunhol porque era muito mais charmoso), nao é todo dia que se vive e parece que eu esqueci o quanto sao valiosos esses momentos de perrengue. Nao tenho porque falar mal ou falar qualquer coisa que pareca uma generalizacao do povo, dos lugares ou de qualquer outro detalhe que tenha vivido na Venezuela. Mesmo porque, como eu disse antes, sei exatamente o que é viver em estado de desespero e é muito facil julgar quando estamos de fora. Falei merda, ignorei minhas experiencias, fui arrogante e mimadinha. Foi uma experiencia interessante.
Quanto a Quito, cheguei hoje a tarde (25/dez – 15hs), as pessoas sao muito simpaticas e a cidade tranquila (apesar de dizerem que eu vou ver só amanha). Estou feliz e em paz. A gripe esta passando, a dor na bunda (atropelamento por carruagem!) esta passando e o tempo parece que nao.
Ontem a noite, ainda em Bogota, passeando pelas ruas centrais enquanto o comércio se despedia dos moradores, batia em mim uma imensa vontade de existir em espanhol.
Tomara que o Natal de voces tenha sido bom assim.



Escrito pela Alê Félix
26, dezembro, 2007
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Minha imaginacao sempre me disse que o inferno poderia ser um lugar terrivelmente frio onde todas as pessoas fossem identicas a mim. E juro que eu pensava que só me depararia com uma droga de lugar como esse caso morresse e tivesse feito muita merda nessa vida. Nunca imaginei que minhas idéias de girico me levariam a Venezuela, meu grande inferno.
Nao, gracas a deus, fisicamente eu sou mais bonitinha que a maior parte das mulheres que vi por la. Ate quis saber onde eles escondem as misses universo que sempre levam o titulo. Ou eles esconderam muito bem a mulherada bonitona do lugar ou os cirurgioes plasticos locais sao os melhores do planeta. O inferno nao era visual, nem exatamente climatico, mas comportamental. Grande parte dos venezuelanos que encontrei possuem caracteristicas da minha personalidade que eu detesto, tento mudar e muitas vezes nao consigo. Foi muito dificil ver tantas pessoas (salvo raras excecoes. Juro que nao estou generalizando, nao encontrei só gente estranha, mas muitas pessoas tendo atitudes relativamente iguais perante algumas situacoes) falastronas, sem compromisso com o que dizem, malandrinhas e com uma pressa constante e inexplicavel. Vou resumir porque cybers cafés andam me fazendo perder horas e horas por aqui, nao percam o tempo de voces com a Venezuela e nao tentem atravessar a droga da fronteira pela Colombia. Se eu nao tivesse nascido no Jardim Angela juro por deus que teria morrido do coracao nas 37 horas de viagem (onibus, vans, carros fodidos dos anos 60 que eles ainda chamam de taxi) de Carabobo na Venezuela ate Cartagena na Colombia, onde estou agora. Nao foi nada facil. Muitas vezes a impressao que tive foi a de estar no Afeganistao e nao na America do Sul. De Maracaibo (ultima cidade da Venezuela, fronteira com a Colombia) até Barranquilla (primeira visao de cidade depois das 8 horas de viagem a noite pelas estradas da Colombia) o raio da Van que escolhi para fazer o percurso era parada pelo exercito a cada meia hora. Impossivel dormir. Primeiro pelo cagaco das paradas constantes e segundo porque as estradas sao excelentes e os motoristas metem o pé no acelarador e chegam a dar 150 nuns puta pau velho que a gente ai no Brasil nao tiraria do ferro velho. É inacreditavel e assustador. Se em algum momento eu tivesse pensado, tivesse nocao do que seria essa viagem, jamais teria vindo. Por isso, pelas dificuldades encontradas, pela construcao do meu carater depois de passar pelo meu inferno pessoal (e ter certeza do quanto preciso mudar) e depois do que tem sido Cartagena (apesar de ser impossivel encontrar um hotel com agua quente desde que sai de Caracas), tudo tem valido muito a pena.
Tem sido muito dificil escrever, tem sido muito dificil tudo, eu esqueco muita coisa, mas sempre que der volto pra dar noticias aos amigos, parentes e pra quem vem me ver por aqui de vez em quando. Dois minutos pra fechar o cyber, beijo.



Escrito pela Alê Félix
22, dezembro, 2007
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Esta tudo bem, maquina fotografica na bolsa, nenhum incidente diplomatico. Eu adoraria escrever mais, mas é sempre muito corrido vir aos cybers. Ligar tambem tem sido complicado.
Mae, relaxa: eu sou uma cacadora de mitos, nao uma fora da lei. Estou bem.



Escrito pela Alê Félix
18, dezembro, 2007
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