Tomara que minha mãe nunca morra. Não porque ela é minha mãe, não porque eu goste da companhia dela. Não quero que ela morra porque eu sei que depois dela, minha família nunca mais será a mesma.
Vim de duas famílias muito grandes e muito diferentes, sabe? Do lado materno, me sinto em casa. Todos são normais, donos de uma aparência e comportamento que os fazem circular naturalmente em qualquer ambiente. Gosto bastante do meu lado materno. Tanto que cresci dizendo que minha mãe salvou a evolução genética da família de meu pai.
OK, era sacanagem minha. Não muita, mas era. OK, era. A família do meu pai é MUITO sem noção. Não, vocês não fazem idéia. Surreal de sem noção. Um dia desses, por exemplo, rolou um acidente feio na marginal Pinheiros e um cara perdeu a perna. No meio do furdunço, o sujeito berrava em desespero: “Perdi minha perna! Perdi minha perna!”. Um dos meus tios (irmão do meu pai) estava numa lotação, ouviu a gritaria, enfiou a cabeça pra fora da janela e danou-se a gritar: “Não perdeu, não! Não perdeu, não! Ela tá ali ó!”.
Tá rindo? Acha que eu tô de conversa, né? É sério. Pior, ele falava sério! E, juro, isso não é nada. Meu pai é o menos lelé e, quando eu digo “menos”, te garanto que é um “menos” muito pouco “menos”. Meu pai deu sorte. Na verdade, esta é a estrela dele: ele tem sorte. Foi um cara tímido pra cacete, se achava feio (apesar de não ser) e estava condenado a morrer virgem e tantã se não tivesse socorrido minha mãe de um atropelamento de bicicleta. Casaram um ano depois e misturaram duas famílias grandes, muito diferentes, mas que se tornaram muito próximas devido ao dedo de minha mãe.
As vezes, chego na casa dos meus pais nos fins de semana, olho para aquele monte de carro estacionado no portão e me pergunto se estaríamos lá se ela tivesse ido passear no shopping, se fosse uma mulher ocupada com a profissão, se não gostasse de cozinhar e manter as portas abertas. Se um dia ela morrer, o cheiro da panela no fogo não será o mesmo, o telefone irá parar de tocar, a casa perderá a alma e o vento se encarregará de fechar aquelas portas. Se um dia ela morrer, as festas só serão celebradas quando virarmos as páginas dos álbuns fotográficos. Se um dia ela morrer, é provável que comecemos a morrer…
E se ela morrer antes do meu pai?
Foi essa a pergunta que me fiz no último dia das mães.
Ah, se ela morrer antes do meu pai, eu tô ferrada.
Foi essa a resposta que resmunguei em silêncio… Porque ele é da parte maluquinha. E eu e meus irmãos achamos que nós não somos maluquinhos, que puxamos só para a minha mãe, sabe? Se bem que eu não sei mais nada… Acho que ele está apaixonado. Até o mês passado, ele corria todas as manhãs, fazia academia no fim da tarde, acordava disposto virando tigelas de aveia com mel e ia trabalhar com a energia de alguém que não faz a menor idéia de que já passou dos sessenta. De uns dias pra cá, anda numa tristeza sem fim. E eu, que sinto cheiro de pé na bunda a quilômetros de distância, já tô achando que aquilo deve ser dor de amor.
Tomará que minha mãe não tenha percebido… Por que não? Porque ela não é como ele. A felicidade dela está cimentada em cada tijolo da nossa casa, a dele não. Ele acha que a dele está na variedade das cores dos olhos de uma mulher, nos sonhos de infância, no desejo de se jogar no mundo… Vocês acham que pai e mãe enquanto casados não se apaixonam por outras pessoas, né? Quisera fosse tão simples…
Acho que meu pai está apaixonado pela segunda vez na vida. A primeira virou amor, virou parente. Ele achava minha mãe uma menina linda e morria de medo dela trocá-lo por um cara mais jovem. Tá nas fotos do casamento, ele era louco por ela. Fotos falam, ele nem precisou me contar. A segunda? A segunda deve estar doendo pra cacete… Ele nem quis correr no parque no último domingo… Paixão.
Passei a vida toda tentando ser o avesso dele… Inconscientemente, claro. Vi isso tem pouco tempo. Antes, ele era o atleta e eu a jogadora de video-game, ele acordava e eu ia dormir, ele queria que eu estudasse para ser o que eu quisesse ser… Mas decidi primeiro ser alguém, para depois estudar o que quisesse e quando quisesse. Ele nunca me disse exatamente o que ele era, mas eu fiz o possível e o impossível para que não nos tornássemos a mesma pessoa. Nunca quis ter nada da personalidade dele, nunca olhei para os meus genes paternos com carinho e gratidão. Sempre percebi que minha mãe era a responsável pela casa cheia, por aquele teto, por todos os nossos alicerces… Um alicerce conservador, honesto e humilde. Mas só agora vejo que sua obra – apesar de firme – era de uma simplicidade tão grande que se não fosse pela loucura extravagante de meu pai, eu e meus irmãos talvez tivéssemos nos tornado moradias sem janelas.
Meu pai é um homem que eu mantive distante… Um cara que um dia desses eu peguei conversando com meus irmãos e dizendo: “Ela não precisa terminar nenhuma das faculdades que ela começou e largou. Se ela quiser, tudo bem. mas não por medo do dia de amanhã. Ela é livre, faz o que quer, vive como quer e vive bem. Vou me preocupar com o futuro dela porque? Com vocês é natural que eu me preocupe, com ela não. A Alessandra voa!”.
Eu devia ter saído correndo pra chorar escondido no banheiro porque foi a primeira vez que vi meu pai me dizer sim. Devia, mas não fiz isso. Dei a volta no corredor e fui chorar escondido no banheiro, é verdade, mas não chorei. Agora eu tô, mas naquela hora não chorei não. Fiquei com um aperto no peito, um nada de lagrima nos olhos e um sorriso em frente ao espelho. Um sorriso de quem percebe o tamanho da merda invisível que construiu durante tanto tempo. Passei todos esses anos tentando não ser igual ao meu pai e fiquei a cara dele. Não pelos gostos, não pelos desgostos, mas pela essência. Ele me deu tantas janelas e eu fui sobrevoar justamente os horizontes que ele sonhou antes de mim. Meus sonhos, minhas asas, minha aparente liberdade, toda essa minha loucura ridícula e obcecada por paixões; são o meu pai, são os meus dias bons.
Tô indo pro Rio de Janeiro amanhã de manhã. Não há paixonite que continue doendo sob as asas do Cristo Redentor. Sendo assim, fiz um arrastão naquela família e vou passar o fim de semana com meus pais, irmãos, irmã, cunhadas e com o meu sobrinho. Sábado é aniversário do meu pai, vou leva-lo pra voar de asa delta. Ele disse que anda meio triste, mas que topa. Não falei? Paixão e tantanzice. Queria ser tão corajosa quanto ele…



Postado por:Alê Félix
24/05/2007
0 Comentários
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Mel

maio 25th, 2007 às 10:55

uau…! Boa viagem, bom vôo!


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ruben

maio 25th, 2007 às 12:39

“Eu devia ter saído correndo pra chorar escondido no banheiro porque foi a primeira vez que vi meu pai me dizer sim.” – do lado de cá, chorei também…


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ALENA

maio 25th, 2007 às 20:27

Alê, que texto maravilhoso! Parabéns!! Vou copiá-lo para usar em sala. Autoriza?


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rena456

maio 25th, 2007 às 21:42

oi alê
fiquei emocionada com seu post,
lindo,meu pai é meio porra loca!
ele ando dando susto na gente,
tava mal no hospital!(fugia pra fumar)
seu texto me lembro ele! minha mãe é
brava,e ele sempre uma criança! minhas janelas…
beijos bom find!


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Anniele

maio 27th, 2007 às 16:56

oi Alê…amei o texto…putz falar de mãe é fácil,mas de pai…
adorei!!
p.s.:se puder passa nesse site e leia esse texto
http://www.betinha.com.br/poe/dar.htm


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ana

maio 27th, 2007 às 20:50

Ah… fiquei emocionada!! Histórias parecidas, sabe como é…Que lindo q vc se preocupa em melhorar a vida dele… com uma atitude q seja!! Bom voo de asa deltas… bons vôos na vida!!!! =D gde beijo


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Clarice

maio 30th, 2007 às 19:16

A cada parágrafo eu pensava: que mulher, que pessoa fantástica; como escreve; vou ter que comentar isso e aquilo; que emoções parecidas com algumas minhas, mas que não sei colocar no papel; como ela é parecida com o pai;que mulher corajosa; ela tem razão, quando um se vai a família se desmancha em todos os sentidos- meu pai se foi e a família idem.
Parecia que eu praticava salto de um pico de montanha para outro.
Aí, terminei de ler e só consigo escrever que eu admiro, mas acima de tudo, gosto muito, mas muito de você!


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Marcos

maio 31st, 2007 às 15:25

lindo…..sensível e ao mesmo tempo crú, sem adereços…….uma crônica de todos os dias. parabéns.


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