Como é que eu pude esquecê-los durante tanto tempo? Lembro que aconteciam na época que minha avó me obrigava a lavar a louça alegando que tarefas domésticas construíam o caráter. Ela tinha razão, mas eu odiava ter que arrumar as coisas… Talvez, por isso, tenha sido naquele período que os sonhos com a moça da banheira começaram.
Na verdade, eles aconteceram poucas vezes. Lembro da sensação de bem estar ao acordar, lembro de permanecer na cama, apertar os olhos e agarrar o travesseiro na tentativa de não deixá-los escaparem da memória.
Tentava reconhecê-la… Ela, a moça dos sonhos, parecia um pouco com minha mãe, tinha algo das minhas tias, mas era dotada de uma mistura de traços que a tornava filha de todos nós. Gente grande que era, ela passeava de roupão de banho por uma casa arejada e com cores de madeira. Era um sonho bom e recorrente onde eu acompanhava sua rotina, seus dias, seus pés de lã atravessando a cerâmica vermelha e encerada da cozinha.
Pela manhã, uma senhora de olhos indianos preparava um café com cheiro de família… Um perfume a vapor que dançava pelas frestas das venezianas. No centro da casa, um banheiro tão grande que dava pra morar nele. Uma cama bem grandona com lençóis que deslizavam no corpo só pra ela… De vez em quando, só de vez em quando, pra ela e para o namorado.
Perdida em uma nuvem quente e acolhedora, eu e minha infância seguíamos o pingotear do chuveiro sobre uma banheira branca e a espiávamos cochilando abraçada pela espuma. Era um sonho bom… A dela, uma vida boa. A minha, espera e impaciência. Eu só queria crescer logo, queria parar de contar os dedos do futuro.
Acordei hoje de madrugada e fui até a varanda. Não consegui mais dormir. Estendi a espreguiçadeira e deitei sobre o relento a espera de um amanhecer qualquer. Tempo nublado… O dia clareou cinza e sem raios de sol. Na tentativa de aquecer a alma, saí pra caminhar.
Ladeiras, ladeiras e ladeiras… Quase dez anos morando aqui e só agora percebo o quanto gosto dessas ladeiras e ruas tortuosas de paralelepípedo. Paralelepípedo?
Dia desses, voltando de uma viagem, o carro não trepidou ao dobrar a esquina. Ladeira abaixo, percebi no horizonte a faixa de piche que se estendia onde antes eram pedras. Foi uma sensação estranha, mas as lembranças da viagem anulavam meus questionamentos cotidianos.
Meus medos me assombram até vestidos de piche… Antigamente devia dar pra ver o bairro todo daqui.
Do alto de uma das ladeiras, lembrei dos sonhos que eu sonhava quando era garotinha, olhei pra minha casa…
A moça da banheira era eu esse tempo todo. Eram sonhos de um futuro que eu desejava mais do que presentes de Natal e não os reconheci quando eles chegaram. Agora, agora meu bairro está mudando e eu me recusando a mudar. Agora quero parar o tempo, quero café, banho de espuma, quero ajudar a menina de olhos indianos com a louça e saborear em paz as manhãs de café… Não era a vida de alguém que eu guardava no meu travesseiro de arco-íris, aquele era o meu próprio pote de ouro.
Antes de voltar pra casa, parei na padaria pra comprar pão quente e café moído na hora. Feliz por perceber que eu vivia a vida que sonhei quando menina. Uma sensação boa me dizendo que, agora, eu sabia onde estava. Aquela era minha casa, meu porto seguro, não havia o que temer, nem motivos para acelerar o tempo. Dei bom dia para os vizinhos, sorri para pessoas que eu mal via passar…
– Você mora ali perto do antiquário, não mora?
– Moro sim…
– Em cima da mecânica?
– É…
– O pessoal da construtora já foi lá negociar com vocês?
– Que construtora?
– Xi, minha filha… Não lembro o nome. Mas eles estão comprando todas as casas aqui desse quarteirão. Vão construir um grande empreendimento imobiliário.
– …
Sai da padaria e voltei pra casa. Fiquei um pouco no portão olhando o vazio do começo da manhã e imaginando que em poucos anos aquela cena de bairro seria transformada diante dos meus olhos. Ou longe dele…
Das pedras ao piche… Quanto tempo será que eu tenho? Pra onde eu vou agora? Eu devia ter percebido que era hora de mudança, que essa batalha de resistência e pressa é batalha perdida… Como é que se aprende a prestar atenção nos sinais que a vida dá pra gente?
Abri a porta, subi degrau por degrau e voltei para o meu roupão de banho enquanto a água quente acumulava na minha banheira…
Minha? O que será que é realmente nosso nessa vida?
Dei uma volta arrastada pelos cômodos da casa. Abri as janelas, segui até a cozinha. Pilha de louça sobre a pia, seis horas da manhã… Cedo demais pra acordar, tarde demais pra fechar os olhos.
– Bom dia!
– Bom dia…
– Ué! O que aconteceu? Você lavando louça!?
– É… Tentando remendar as coisas.



Escrito pela Alê Félix
2, fevereiro, 2007
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