Estou no meio de uma reforma. Uma reforma que eu adiei alguns anos e que, enfim, começou a surgir por trás do quebra-quebra. Para não correr o risco de ver o tamanho da bagunça, pedi ajuda profissional. Alguém que me entregasse aqueles destruídos cômodos com os devidos retoques, curativos, pintura nova e, se possível, uma decoração que não deixasse lembranças dos estragos causados pelo tempo.
Fiz o possível para não ver nada. Fechei os olhos. Ouvia os barulhos, desviava dos pedreiros e abria a porta somente durante a madrugada. Acendia todas as luzes, procurava defeitos, reclamava sozinha da demora. Um dia, no fim de um dia, acordei de mau humor e decidi pedir que acabassem logo com aquilo. Eu queria acordar em outro lugar…
– Cadê o pedreiro?
– Já foi. Disse que precisava sair com urgência e que não tinha caçamba pra retirada do entulho. Você vai ter que dar um jeito de tirar o lixo de lá durante a noite se quiser que eles continuem o trabalho amanhã de manhã.
Olhei para aqueles sacos espalhados e pensei em jogá-los em caçambas alheias. Já era madrugada, ninguém perceberia. Madrugadas fazem cair as máscaras… Tentei erguer um dos sacos de entulho e achei pesado demais para uma noite de lua e vento gelado. Vesti um casaco e fechei a porta. Sai dali antes que a poeira me causasse algum tipo de alergia. Voltei para a cama e apertei os olhos…
– Que barulheira é essa?
– O pedreiro!
– Que horas são?
– Onze da manhã.
– E ele só chegou agora?
– Só. Ele quer conversar com você.
– Diz pra esperar vinte minutos.
– Ele disse que está com pressa.
– Diga que eu estou com sono.
– Você precisa começar a me pagar pelos recados que manda.
– Você já recebe até para me dar bronca.
Quarenta minutos depois…
– Boa tarde!
– Oh, dona… Tarde. A senhora me desculpe…
– Só um minuto… Quem é o senhor?
– Ah, me perdoe. Eu sou o pai do Cristóvão.
– E o que aconteceu com o Cristóvão?
– Ele pediu que viesse eu porque ele está muito enrolado com outra obra e…
– Mas o senhor sabe arrumar esse piso?
– Fui eu que ensinei o trabalho pro meu filho, dona! Tô velho, mas sei o que fazer. Só tô um pouco cansado… Por isso atrasei.
– E o senhor me chamou para?
– É que eu vou ter que sair mais cedo porque minha mulher tá com câncer no corpo todo, sabe? Ela tinha um tumor há uns cinco anos e a senhora sabe como é a ignorância do povo, né? Na época ela não quis tratar e rasgou o tumor por conta e risco na cozinha lá de casa. Agora tá que não agüenta nem andar… O médico desenganou. E eu tenho que carregá-la nas costas de tão fraca que a pobre ficou. Grandona ela… Maior que eu! Mais alta que a senhora. Minhas costas tão que tão arrebentadas sabe, dona? Ainda errei o caminho, desci numa avenidona lá pra baixo e subi esses morros todos a pé até encontrar o endereço da senhora. Nem sei mais o que fazer da vida… Mas a senhora num se preocupe não porque até o fim do dia eu acerto esse piso todo. Já enfiei aquela bagunceira em sacos de lixo e deixei na calçada. É torcer pro lixeiro levar.
– Carregou aquilo tudo sozinho?
– O que são dez sacos de entulho pra quem carrega um fardo como o meu na vida, dona?
– Não é melhor o senhor ir pra casa cuidar da esposa? Eu falo com o Cristóvão depois.
– Não, não! Pra mim é uma alegria trabalhar porque é quando eu esqueço da vida. Duro mesmo é ir pra casa ou pro hospital e ver a minha preta naquele estado… Eu só queria mesmo pedir desculpas pra senhora pelo atraso.
Voltei para o quarto depois de tomar um café com o pai do Cristóvão. Fechei a porta, avisei que não queria atender o telefone e me joguei na cama de barriga para o alto. Fiquei um tempo olhando a cortina e as frestas de luz que entravam pela janela e dançavam refletidas na parede. Meus lençóis gelados e as fronhas de percal distraindo meu desconforto. O som distante da minha braço-direito-esquerdo cantarolando na cozinha se intercalava com o som da marreta quebrando o piso.
O que será de mim se, um dia, eu precisar carregar sozinha os meus sacos de entulho? O que será de mim se, um dia, os dias se tornarem mais sombrios do que as minhas madrugadas chorosas por coisa nenhuma? O que será de mim o dia que eu tiver que encarar os meus males ao invés de rasgá-los como faz a mãe do Cristóvão? O que será das minhas costas se for preciso carregar alguém maior que elas? O que será da minha arrogância se, um dia, eu depender da sua bondade? O que será de mim o dia que reformas não bastarem pra esconder meus alicerces? O que será de mim se eu tiver que confessar que não sou forte?



Postado por:Alê Félix
01/09/2006
0 Comentários
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Blogue da Magui

setembro 1st, 2006 às 22:40

Se eu não resistisse à tentação de dizer que seu texto é soberbo eu diria Putz!!


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roberta

setembro 2nd, 2006 às 12:55

Nossa, que pesado.


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Eduardo Tetera

setembro 2nd, 2006 às 14:28

É. Dá mesmo o que pensar.
ying yang


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katia hokamura

setembro 2nd, 2006 às 21:30

voce me surpreende sempre qdo decide colocar as coisas sem um lado cômico,o texto tá com uma veracidade tocante…tbm tenho conseguido esconder meus alicerces,mas não sei até qdo vai aguentar…espero que por muito tempo ainda…um beijo…e até amanhã…


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DeH

setembro 3rd, 2006 às 3:57

aí você senta na beira do mar, lembra do sabino e se deixa chorar até sentir que o seu peso sobre si mesma parece menor.. num sei o que vem depois disso..


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Paulo

setembro 3rd, 2006 às 14:01

Suas metaforas são surpreendentes.


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Denise

setembro 3rd, 2006 às 14:03

Lindo, Alê. Você é foda. Fala de você como se estivesse falando de mim. 🙁


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Miro

setembro 3rd, 2006 às 14:06

O dia que você precisar confessar, muita gente vai te segurar com abraços.


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Viva

setembro 3rd, 2006 às 19:24

Deu nó no meu peito.


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Ana Holtz

setembro 4th, 2006 às 0:17

Bom, o q dizer?!! já que tenho me sentido exatamente assim, com um peso maior q eu! e sem demontrar a ninguém o quanto fraca eu sou!!!
lendo isso aqui noto q não sou tão diferente qnto muitas vezes penso ser!


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Amber F.

setembro 4th, 2006 às 12:35

E às vezes reclamamos de coisas tão bobas…


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Gabi

setembro 4th, 2006 às 13:55

Alê, se um dia você ficar sozinha, eu te ajudo a carregar os sacos. Moro perto, lembra?
Estamos aqui, mulé. Na saúde e na doença. =)


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Camila

setembro 5th, 2006 às 9:32

sem palavras, o texto ficou magnifico!!!


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Thiago Cauduro

setembro 5th, 2006 às 13:53

“A dor é boa.”


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Jana

setembro 5th, 2006 às 14:00

Magnífico texto…
Eu estou por descobrir… Estou confessando que não sou forte, mas não tenho capacidade de carregare ainda sozinha meus sacos de entulhos…
Beijos


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Renata

setembro 5th, 2006 às 15:23

“É quando eu fico mais fraco, que eu fico mais forte.”


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Mani Adaia

setembro 5th, 2006 às 21:24

O que será de nós quando tivermos de depender da bondade do outro???


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Ane

setembro 5th, 2006 às 22:11

Não se preocupe, a gente sempre pensa que nao aguenta “os sacos”, mas quando é necessário mesmo carregá-los e só vc pode fazer isso, aí sim vc percebe o quanto a sua força é maior do que imagina e às vezes até do queria..


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aline bottcher

setembro 5th, 2006 às 23:06

Poxa…e pensar que a gente reclama de cada firula, né, não??
às vezes também me pego pensando nisso…no fundo, não somos tão forte quanto imaginamos. Geralmente, somos mais.
abraços e tudo de bom…


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sombradeSonhos

setembro 5th, 2006 às 23:07

É difícil encontrar pessoas que sejam realmente fortes… o mais simples é fingir!


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nielphine

setembro 6th, 2006 às 2:09

oii ^^ obrigada por ter lembrado do mim. li o texto, e me pergunto a mesma coisa… me pergunto a mesma coisa depois de receber um pedido de casamento no mesmo dia em que acabo de receber uma informação sobre um mestrado no exterior super wow plus plus. q, se eu estiver casada naun vou poder fazer. tia alê, não sabes qta água rolou por esse moinho ultimamente… queria ter tempo d te contar tudo. nway, fingir ser forte não adianta, eu jah tentei. td bem q eu tenho menos experiencia q vc, mas sei lah… sempre tenho a impressão d q no final dói mais. agora tem momentos em q td q dah pra fazer é seguir em frente. e qdo vc nem olha pros lados nem pára pra se perguntar os pqs ou comos da situação, acaba fazendo mto mais do q se julga capaz. e em momento nenhum vc pensou em fingir ^^.


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Dapirueba

setembro 7th, 2006 às 23:17

meliga…:)


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Luiz Valério

setembro 8th, 2006 às 15:15

Nossa, que texto maravilhoso! Que estilo elegante de escrever. Quanto ao assunto tratado, às vezes nossos problemas parecem monstros horrorosos. Mas sempre haverá alguém cuja vida está numa situação que o Katrina parece nada. Grande beijo!


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wagner

setembro 9th, 2006 às 20:31

Caso tenha mais algum entulho pra carregar e for pesado é só me chamar que eu te ajudo, amigos sim, você tem muitos e nem sabe, por que não os conhece, mas através de seu blog, muitos igual a mim, te considera como uma grande amiga (o).
Beijos.


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Adriana

setembro 9th, 2006 às 22:46

Reencontrei o seu blog depois de anos… continua bom com sempre.
Parabéns!


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Cristianne

setembro 10th, 2006 às 0:47

A ocasião faz a pessoa… O dia que vc não tiver quem carregue seus sacos de entulho vai perceber o quão forte é e vai dar cabo de todos, um por um, um de cada vez.


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Junior Metheoro

setembro 11th, 2006 às 16:50

eu juro, eu passo mihlões de anos pra voltar aqui, quando volto sou recebido com isto…
estou em prantos!
aplausos servem?
O_O


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Juliana

setembro 12th, 2006 às 0:16

eita, Alê… bateu, viu? Eu já tinha vindo aqui, mas nunca tinha deixado comentário. Mas esse post… são esses nós na garganta que desatam os outros, os da cabeça, que insiste em inventar problemas que não exitem. Beijo e parabéns.


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Jack

setembro 12th, 2006 às 16:52

É sempre estranho pensarmos nas nossas fraquezas, principalmente quando não temos que encará-las no momento. Mas sempre descobrimos ter mais forças do que imaginamos ter quando precisamos dela. É como a história do pedreiro… será que um dia ele imaginou ter que “carregar” a mulher nas costas que é maior que ele? Creio eu que não. Creio eu que ele sequer imaginou que um dia ela ficaria doente. É assim na nossa vida.
Vivemos o hoje e bem vivido, porque amanhã talvez precisemos dar ou receber ajuda!
Tudo de bom e boa semana. Não vinha aqui há muito tempo. Gostei de voltar.
Beijinhos…


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Sílvia Nunes

setembro 13th, 2006 às 16:13

Me fez pensar…mudou meu dia.


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honey

setembro 13th, 2006 às 22:45

isso pq o cara contou uma história pra dar desculpa por sair cedo e se atrasar…
hum…
o que seria de mim se estivesse no seu lugar?
talvez eu não teria ouvido a história dele, de tão estressada q ando
mas passa


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Thá Bergamo

setembro 15th, 2006 às 13:47

Vc diz o que eu sinto, o que o outro sente. impressionante! Vivimemos situações diferentes e parecidíssimas ao mesmo tempo. Mas compartilho com você o que a minha mãe costuma dizer: “Deus nos dá um farto nem menor, nem maior, daquilo que possamos suportar”! Todos temos fraquezas, mas são superadas, porque aprendemos a lidar com elas, e assim, nos tornamos mais fortes e seguros.


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ratapulgo

setembro 24th, 2006 às 15:37

AlÊ, querida,
copiei este aqui!
Boa sorte com a reforma e não deixe o entulho te carregar!
beijos!


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jane

outubro 29th, 2006 às 14:04

que idiota essa é a cisa mais imbecil da minha vida
ISSO È UM COCO


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Jannine

novembro 20th, 2006 às 14:11

de repente me deparei com o texto.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
Vivemos muitas vezes o lado da reforma. Outras, o lado do pedreiro.
Angustias diferentes. Medos iguais.


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