Encontrei isso em um caderno velho (1992 ou 1993, acho.). Fiz de tudo pra lembrar o momento que eu estava vivendo porque essas frases me pareceram tristes e eu achei que devia estar muito triste para escrevê-las. Mas não lembrei, não lembrei de jeito nenhum. E fiquei me perguntando se algum dia eu vou sentir as coisas diferentes do que sempre senti.
Eu sou a velha no portão esperando o tempo acabar…
Sou o catador de lixo agradecendo as migalhas e recolhendo os restos.
Eu sou a louca cansada de se debater.
E fecho os olhos para a loucura, para as sobras e para o tempo.
E não acaba.
E não quero.
E não sou.
Sou a criança que esqueceu a infância no banco da praça e nunca mais voltou para procurar.
Sou a adolescente que rasga as roupas para pedir um abraço.
E parece que não existe nada depois da adolescência.
E o pedido do abraço nunca saiu da minha boca.
E o tempo terminou de rasgar minhas roupas.
Eu sou a inconseqüente da história.
Sou a esposa que prepara todos os dias o jantar para o marido que morreu.
Sou a esposa que o espera no portão quando bate as dezenove horas.
Sou a esposa em frente à televisão.
Eu sou a esposa.
Me sinto como a namorada se aprontando para a festa que foi cancelada.
Me sinto como a namorada traída pela melhor amiga.
Me sinto como a namorada bêbada confessando seus pecados para o namorado perfeito.
Eu nunca fui uma boa namorada.
E às vezes acaba.
E às vezes eu quero.
E às vezes eu sou.
Eu sou a vilã da história.
Me vejo como vejo um homem chorando.
Me vejo como vejo uma mulher mentindo para Deus no confessionário.
Me vejo como vejo as crianças gritando quando se machucam.
E sinto as dores dos homens, das mulheres, das crianças.
E nunca pára de doer.
E misturo todas essas minhas dores no silêncio do meu peito.
E me contaram que existe um jeito de transformá-las em girassóis-da-rússia, castelos de areia ou em céu pintado de outono.
Mas que jeito pode ser esse, se eu sou coadjuvante na minha própria história?
Eu sou a velha no portão olhando para o vazio do mundo que lhe restou.
Eu sou a velha no portão lacrimejando a saudade da vida que passou.
Eu sou a velha no portão…
E não acaba.
E não quero que acabe.
E os meus dedos parecem sempre entrelaçar os fins.
E eu ainda nem desembrulhei a vida do pacote que me deram.
E me contaram que ela veio sem rima, sem ritmo e que toda hora desafina.
Tantos pedaços dentro de uma história tão curta que eu talvez esqueça que ainda sou só uma menina.



Escrito pela Alê Félix
11, junho, 2005
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