Minha preguiça se tornou senhora dos meus passos de uns anos para cá. Sei o lugar mais próximo de casa para qualquer necessidade e, a não ser que dê tudo errado, eu não saio das redondezas. Essa semana deu errado. Fiz uns exames de rotina na semana passada e o laboratório de analises clínicas que fica a duas quadras da minha cama, me notificou que não faria um exame de zinco solicitado pelo médico. Um exame aparentemente besta, mas que, de repente, todos os laboratórios da região decidiram não fazê-lo. Cansada de procurar o porquê de tanta dificuldade, liguei para o convênio e a resposta do discípulo do mestre dos magos me fez levantar a bunda da cadeira e passar uma hora no trânsito.
– Eu não vou atravessar São Paulo para fazer um exame simples como este.
– Entendo senhora, mas é sua única opção para descobrir a causa dos seus males.
– Não é não senhor. Eu posso optar por não fazer exame nenhum, por exemplo. Posso mudar de convênio, por exemplo…
Fazer ameaças nunca foi o meu forte…
– Nós sentimos pelo incomodo, mas a senhora é livre para escolher o caminho que desejar.
Odeio “única opção”. E que papo era aquele de “caminho” e “males”? Desde quando os atendentes dos planos de saúde se tornaram mensageiros exotéricos? Com quem essa gente anda tendo treinamento? Com o Paulo Coelho? Droga de convênio do #$%^&(*%.
Não adiantou reclamar e muito menos esbravejar em pensamento. No dia seguinte, fui ao laboratório próximo a casa do c#%^&$*.
Chegando no laboratório – um lugar gigante, com detalhes futuristas e poucas placas com informações básicas – perguntei para o primeiro humano o que eu precisava fazer para ser atendida naquele arranha-céu que mais parecia uma nave estelar. O atendente – fisicamente ignorado pelo meu mau-humor – me deu bom dia e apontou para a máquina de senha.
Me sentindo como se fosse uma velhinha de cem anos, peguei o diacho do número e procurei uma cadeira. Sentei e, minutos depois, o meu 0088 piscou indicando a minha vez.
Senha 0088 e mesa 08… De tempos em tempos eu encano com um número e, o oito, vem se repetindo na última década. O rapaz sentado na mesa 08 era o mesmo que havia me indicado o caminho para a senha. Olhou para mim e disse…
– Oi… de novo.
O humano sorriu um sorriso metálico e eu retribui em silêncio. Entreguei-lhe a guia médica, a carteirinha do convênio e ele me pediu o RG. Revirei a bolsa, dei uma olhada rápida na foto antiga tirada pouco antes do meu aniversário de quinze anos (desde então tenho o mesmo documento, nunca o atualizei) e só então me fixei no crachá de identificação do rapaz.
Foto e nome: Demétrio. O único Demétrio que eu conheci na vida, era o irmão do Marcelo. Não, eu nunca fui apresentada ao Marcelo. Ele era mais velho que eu uns dez anos, era lindo, modelo da Wrangler, morava na casa em frente a mercearia de propriedade do meu pai e eu o perseguia com os olhos quando ele passava e ouvia atentamente tudo o que diziam sobre ele. Foi um dos homens mais bonitos que já vi… E, enquanto ele desfilava pelas ruas do Brooklin e nas passarelas da moda, eu era só a filha pirralha do dono da Mercearia da Dias Velho. Atrás do balcão nas horas vagas, eu passava horas olhando para o outro lado da rua só pra vê-lo aparecer e desaparecer.
Ele tinha que morar bem em frente dessa mercearia?
Minhas viagens se perdiam naquela cabeleira cacheada, naqueles olhos azuis… O corpo magrelo, alto, lindo… E eu, uma fedelha, gordinha, em fase de recuperação do corte pigmaleão que destruiu meu cabelo…
Droga! Ele nunca vai olhar pra mim.
A vizinhança toda dizia que ele usava drogas, era um rebelde, um alucinado. Eu não dava a mínima, mas a minha mãe me beliscava quando me pegava delirando e esperando ele abrir a janela do quarto, acender o cigarro e debruçar o corpo no parapeito da sacada para pensar e tragar. Eu poderia ter pintado aquela cena uma centena de vezes… Ele era paisagem nos meus pensamentos. E, o que fazia ou deixava de fazer, era a minha imaginação que decidia. De tudo que eu ouvia sobre sua vida de vagabundagem, a única certeza que eu tinha era a sua idade, signo, profissão esporádica e o nome daquele cheiro. O cheiro… Acho que tudo aconteceu depois que eu respirei o cheiro daquela pele. Foi. Foi isso mesmo. Tenho quase certeza que foi antes das dez da manhã. Ele nunca acordava antes da uma da tarde, mas aquele dia aconteceu dele madrugar e me pegar sozinha na mercearia. Não lembro onde meus pais haviam se metido naquela hora, só sei que eu estava no caixa, completamente distraída e, de repente, um cheiro de maresia misturado com nicotina e sabonete… Olho para o lado e vejo o Marcelo de cueca, descalço, um cigarro pela metade na boca e uma nota de cruzeiro na mão. Estava visivelmente de rosto lavado, mas tinha areia de praia esparramada pelo corpo. Sorriu pra mim sem dizer bom dia, pegou um maço de cigarro do display, um litro de leite de saquinho do freezer, se aproximou do caixa, pagou a conta tocando os meus dedos enquanto colocava o dinheiro dobrado entre as minhas mãos. Piscou, disse “tchau, Alezinha!” e foi embora. Tirando o cheiro de mar, nenhum dos outros aromas me agradavam, mas… nele tudo parecia se misturar tão bem que, envolvida naquele cheiro, não me dei conta de que ele sabia meu nome. Ele sabia meu nome! Dá pra acreditar?
Marcelo se transformou em uma paixão platônica durante um ano inteiro da minha vida… Enquanto eu esperava o cabelo crescer, passei horas e horas escrevendo sobre um velho surfista, morador de uma ilha e que ensinava uma adolescente a pegar onda durante as férias. Quando terminei a história matando o surfista em um acidente de carro da ilha para o continente e a procura da garota, fiz uma fogueira daquele monte de papel datilografado e parei de pensar no Marcelo.
– Eu acho que te conheço…
– Pois é, também tive essa impressão.
– Você não morava na Dias Velho?
– Nossa… então você é mesmo o Demétrio. Quanto tempo! Eu não morava lá, meus pais tiveram uma mercearia, eu ia de vez em quando.
– Claro! Lembrei. Como você está!?
– Bem, bem… E você… sua família?
– Tudo em ordem, graças a Deus.
– Seus pais… seu irmão? Bem também?
– Sim… Depois do acidente do Marcelo eles mudaram para Florianópolis, mas agora estão todos melhor adaptados.
– Acidente?
– Poís é… Marcelo perdeu o filho e a esposa em um acidente de carro e, desde então, mudou completamente de vida.
– Puxa… sinto muito.
– Foi muito difícil para todos nós…
– Ele era modelo… se não me falha a memória.
– Hoje em dia dá aula de natação para menores carentes, acredita?
– Natação?
– A vantagem é que as aulas são dadas na praia, lá em Floripa e eu sempre tenho onde passar as férias.
– Quem diria…
– E você o que fez da vida?
– …



Postado por:Alê Félix
22/09/2004
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