A Loba
A anormalidade do Adolpho me assustou um pouco, mas principalmente me entristeceu. Insanidade patológica me deprime. Desmarquei os outros encontros,
dei desculpas e fiquei quietinha no meu canto. Eu sou assim, quando levo uma bordoada da vida, enfio o rabo no meio das pernas e fico choramingando
pelos cantos. Choro tudo o que eu tenho pra chorar, fico de cama, sofro como uma infeliz, durmo e no dia seguinte estou pronta pra outra. Nunca
entendi o porquê, mas preciso de vinte e quatro horas para sarar dos males existenciais que me assombram.
Passado o trauma, combinei de encontrar a Loba na faculdade. Nos encontramos na secretaria; eu estava desistindo de um curso e ela se matriculando em
outro. Depois de meia hora na fila para entrega de papéis, decidimos passar a tarde na melhor sala de aula de uma faculdade: o boteco.
A Loba era completamente viciada em videotexto, me contou que chegava a passar dez horas por dia no micro e que a maior parte dos amigos que ela
tinha eram frutos do sistema de bate-papo. A Grazielly (Loba) era uma garota engraçada, falava pelos cotovelos e era uma dessas raras figuras que não
tem medo de gente. Não fazia tipo, não era mascarada e não ficava cheia de dedos com as pessoas. Era simpática, verdadeira e real.
– Tem uma festa no Bucaneiro hoje. Quer ir?
– Onde é isto?
– Na Vila Madalena.
– Não conheço nem a Vila Madalena.
– Grazielly, você precisa com urgência viver longe de um computador.
A Vila Madalena, no começo dos anos noventa, era minha segunda casa, o lugar com a melhor densidade masculina do planeta, o lugar mais animado, o
ponto de encontro dos meus melhores amigos e o único lugar que oferecia diversão garantida quando a noite estava perdida.
– Você se importa de pedir pra minha mãe deixar eu ir com você?
– Você está brincando, né? Que idade você tem? Quinze?
Em uma época que meninas com dezenove anos voltavam das festas de madrugada, a Grazi ainda pedia autorização e corria o risco de não recebê-la. Ela
era protegidíssima pela família, tinha horário pra voltar, precisava dizer com quem, a que horas, onde e porque. Eu ficava imaginando o quão
contraditório era este comportamento dos pais. Ela não podia sair, mas podia passar o dia conhecendo esquisitões pelo bate-papo. Provavelmente eles
não imaginavam a quantidade de loucos que povoavam o videotexto. Mas, como quaisquer bons pais, eles temiam pelo bem estar da filha enquanto ela
estivesse na rua e não dentro do quarto. Por sorte eles foram com a minha cara e deixaram a Grazi ir e dormir na minha casa. Era o único jeito de
poupá-los. Eles não suportariam descobrir o horário que as festas acabavam.
Daquela festa guardei duas fortes lembranças: a da Grazi tomando tequila e me perguntando que lugar era aquele que brotava homem bonito e a outra de
nós duas sentadas na mureta do Tombaqui fumando cigarro de canela só para fazer tipo e conjecturando sobre o futuro só para fortalecê-lo. Entre uma
bobagem e outra, conversamos sobre a importância de sonhar, planejar, mas deixar a vida nos levar…
– Fodam-se os sonhos. Meu futuro é daqui a uma fração de segundos, não posso perder tempo sonhando.
– Você está bêbada.
– Repito isto a hora que você quiser.
– Pois eu quero muitas coisas da vida. Não quero deixar de sonhar nunca e quero todo o tempo do mundo para trabalhar nos meus projetos. Quero ser uma
grande jornalista, a melhor jornalista! Quero me apaixonar por todos estes garotos lindos que você me apresentou hoje e depois de ter beijado na boca
até pegar sapinho, quero casar, ter filhos e continuar sendo a melhor jornalista. A melhor jornalista com montes de filhos!
– A melhor jornalista da revista Pais e Filhos!
– Não, não… não quero mídia impressa, quero trabalhar na TV.
– Show da Xuxa?
– Porra, não me sacaneia! Você tira sarro de todo mundo que é determinado?
– Tiro sarro de todo mundo que acha que tem a vida sob controle.
– Duvido que você não faça planos para sua vida. Você trabalha feito uma louca.
– Na Teletel? Claro! Chove dinheiro naquela merda. Mas, não sei não… Tem alguma coisa estranha naquele lugar.
– Como assim?
– Ainda não sei. Lá todos me passam a impressão de que vivem morrendo de medo.
– Medo de quê?
– Eu não sei. Pode ser só encucação, mas é estranho.
– Está pensando em mudar de emprego?
– Não sei… Quem sabe eu não compro este lugar pra mim? – Disse sorrindo e abrindo os braços para rua com o intuito de mudar o rumo da conversa.
– O Tombaqui? Ótimo! Se isto acontecer eu quero ser sua amiga pra sempre. Não, pra sempre não. Pra sempre é muito tempo. Só até te internarem no A.A.
Naquela noite, eu nunca poderia imaginar que eu estava certa: o futuro estava realmente muito próximo, tão próximo que deve ter rido e chorado com a
nossa conversa. Riu das surpresas que estavam por vir, riu da nossa imaturidade e chorou pelos sonhos da Grazi.



Postado por:Alê Félix
22/05/2003
Comentários desativados em Videotexto (Post XIII) Comentários
Compartilhe

Comments are closed.