Já vi muitas pessoas acharem que um anjinho e um diabinho cochicham em seus ouvidos. Sempre achei que esta era uma
forma romântica de expressar o turbilhão de coisas que acontecem dentro de nós, mesmo tendo conhecido as minhas
vozes interiores muito cedo.
Como nunca fui religiosa e questionava muito esse negócio de certo e errado, meus símbolos não se adequaram aos
ícones do bem e do mal. Uma das vozes ganhou o título de velha senhora e lembro dela ter ganho esse nome quando eu
ainda era bem pequenina.
Ela reinou soberana dentro de mim durante anos. Não era uma velha fácil, tinha os pés no chão, era severa em muitas
situações, exigia demais das pessoas, era rabugenta, séria e excessivamente independente. Não tolerava de forma
alguma que se metessem comigo, nem com a minha vida. É óbvio que, com esta senhora governando a minha existência e
berrando no meu ouvido, não tive uma infância nada tranqüila. Vira e mexe me metia em confusão. Meu pai reclama até
hoje que eu enfiei a mão na cara dele aos dois anos de idade. Eu não! A Velha. Mas vai explicar… Ela é a mulher da
razão, a briguenta, que não permite que eu carregue desaforos nem até o quintal de casa, a dona que enfia o dedo no
nariz das pessoas e fala mais alto sempre que lhe dá na cachola. É ela a responsável pela minha precocidade,
maturidade e responsabilidade. É culpada também pela minha memória de elefante, pela ausência temporária de
paciência que muitas vezes eu tenho, é fonte de inspiração para os meus dias de cara feia.
Ela me atormenta sempre que acha que deve. Penso em asilá-la desde o dia que a sorrateira tirou a máscara, mas
sempre que tento afastá-la de mim, ela joga o elefante pesadão da minha memória em cima da minha consciência (seu
departamento preferido) e faz com que eu reconheça a sua importância.
Ela já brigou muito para me defender, já botou pra correr muitos dos meus medos. E os que sobraram ela tratou de
isolá-los em um lugar seguro para que eu não os veja.
Durante anos ouvi somente a voz grave da velha senhora que residia na minha cabeça. Até que um dia uma outra voz
surgiu para contrariar as recomendações da Velha. Uma voz mais jovem e mais estridente soprou no meu ouvido um olá
misturado com um sorriso malandro. Foi por volta dos meus quatorze, quinze anos. Era um som sedutor, uma voz
adolescente, porém muito articulada, de um timbre que me dava adrenalina e coragem suficientes para ignorar um pouco
a Velha.
Foi aí que começaram os problemas. Justamente no período que a Velha estava mais atuante, chegou essa moça e desatou
a mudar a minha vida. A Velha ficou enfurecida durante um bom tempo e foram tantas as brigas internas que eu quase
expulsei as duas. Uma dizia “não”, a outra dizia “sim”; uma dizia “fique em casa”, a outra dizia “fuja pela janela”;
uma dizia “esse rapaz não” e a outra dizia “vai ser só mais um”; uma dizia “vá estudar”, a outra dizia “vá viver”.
Era um pesadelo. Mesmo respeitando as opiniões da Velha, era impossível dizer não para minha porra-louca de plantão.
Ela tanto me conquistou e fez mudanças tão importantes na minha vida e na minha personalidade que acabou
conquistando a Velha também.
Boa de papo, aquela menina! Mas malandra de tudo! Era uma maluquice atrás da outra. A Velha passou a intervir
somente em situações de perigo. Eu só ouvia a voz dela dizendo: “Se meteu em encrenca, agora sai.” Nestas horas,
tanto eu quanto a minha menina levada, olhávamos para ela com cara de socorro. Torcíamos para que tudo fosse um
sonho e que acabasse logo. Mas ela sorria ironicamente e dizia: “Vocês vão ver o estrago na hora que o despertador
tocar”.
Eu só não me preocupava mais porque a doida da novata tinha uma gargalhada e um brilho nos olhos que me contagiavam
e me faziam levar a vida muito pouco a sério. Sempre que eu oscilava, ela vinha com o mesmo argumento: “O que você
tem a perder? A vida é assim, o momento é esse. Na pior das hipóteses você vai rir disso no futuro.” Ela sempre
usava como seus aliados a efemeridade do tempo, a rigidez dos seres humanos com suas vidas medíocres, a grandeza do
universo, a alegria de viver a vida intensamente e, quando nada disso fazia efeito sobre mim, a danada ficava em um
canto sentada, cantando baixinho na minha cabeça: “vida, louca vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero
que você me leve”.
Era o seu golpe baixo para me fazer ceder e eu cedia. E adorava vê-la saltar dentro de mim e gritar de satisfação.
Até a Velha ria nestas horas, com desdém, mas ria.
Hoje em dia, elas se dão muito bem. Conversam com mais tolerância, discutem menos e até aprenderam muito uma com a
outra. Sinto que elas gostam tanto desta convivência que, muitas vezes, eu acho que elas pararam de atuar na minha
vida para observá-la. Penso até que elas cansaram de mim, que andam me deixando muito solta. Que bobas! Não fazem
idéia do quanto eu gosto da participação delas.
No fundo, no fundo elas sabem que são muito parecidas. Souberam se respeitar, identificar a hora certa de entrar em
ação e acabaram formando uma bela dupla. Ou por necessidade, ou porque no final das contas as duas perceberam que
tinham um objetivo em comum e que a prioridade era me ver feliz.



Postado por:Alê Félix
05/12/2002
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