– Você o quê?
– Tô indo para uma peregrinação…
– Sério? Que legal! Santiago de Compostela?
– Nem tudo o que é peregrinação é Santiago de Compostela, sabia!? Vou para o Espírito Santo, é um caminho chamado Passos de Anchieta.
– Peregrinação no Espírito Santo? Tá maluca!?
– Ué, se eu estivesse indo para uma peregrinação na Europa seria legal, mas se é aqui no Brasil é maluquice? Brasileiro é um bicho esquisito, né? O povo sem auto-estima…
– Blá, blá, blá… Fala sério, Ale! Espírito Santo? Passos de Anchieta? Anchieta, o padre José de Anchieta? Sei… E desde quando você é religiosa?
– E precisa?
– Nem sabia que ele tinha caminho com o nome dele… Já sei! Você apelou pra algum santo te ajudar com alguma coisa que você queria, conseguiu e agora tá com medinho pagando promessa.
– Claro… Eu, a pagã, com medo de santo…
– Então só pode ser pra emagrecer! Vai andar pra perder uns quilos.
– Que emagrecer o que, menina! Estou até pensando em aproveitar a região e fazer duas peregrinações: durante o dia sigo os Passos de Anchieta e a noite corro atrás da melhor moqueca capixaba…
– Medo de chegar aos quarenta anos sem ter pensado direito na vida! É isso!
– Ainda tô longe dos quarenta…
– Anram… Sei.
– Você não tá namorando nenhum pescador, não né!?
– Olha… Até que não seria má idéia não…
– Ale, não inventa! Era o que me faltava você querer viver de amor e cação a essa altura do campeonato. Você não tem mais vinte anos! Se liga!
– E viver em São Paulo trabalhando quinze horas por dia, chamando bares e festas de diversão e tentando sorrir pra quem morre de medo de dar até bom dia é mais legal do que viver de amor e cação?
– Ai, meu Deus… E não é que é isso mesmo? Você conheceu algum pescador pela internet e tá indo conhecê-lo pessoalmente…
– 🙂 Não… Não conheci nenhum pescador. Mas não acharia ruim se tivesse conhecido. Imagina que história linda isso não daria…
– Olha, falando muito sério, aproveita esse seu caminho espiritual aí e pede pro Anchieta te curar dessa necessidade de só ver graça na vida quando está apaixonada ou escrevendo. Isso sim não está certo… Tem outras coisas na vida que são legais, nem tudo tem que ser paixão ou história bonitinha pra você colecionar e sair escrevendo.
– É…? E o que mais é legal?
– Ah, sei lá… Assim de sopetão eu não sei dizer, mas que a vida é muito mais do que isso, isso é!
– Eu concordo contigo… Mas acho que gosto é uma espécie de filtro que faz a gente conseguir olhar pra vida com um pouco mais de clareza e tranquilidade. E o meu filtro predileto é a paixão. Que é que eu posso fazer contra isso? Seria como te pedir pra parar de pintar. Você conseguiria?
– Não. Mas você insiste em usar só esse filtro. Escolhe outros, pombas!
– Quem sabe não encontro outros filtros nos 100 km dos Passos de Anchieta?
– Querida, na boa… Você já foi picada por cobra zanzando pela região do Pantanal, já atravessou a pé a fronteira da Colômbia no auge das más notícias sobre as FARC, já foi presa pelos guardas da residência oficial do senhor Hugo Chávez, correu atrás de vulcão em erupção no Equador, deu banana para os sinais alienígenas do Peru, já cruzou a America do Norte uma barca velha…
– Barca velha!? Era um Mustang V8! Tá louca!?
– Que seja! Você vive fazendo essas coisas e nem filhinha de papai você nasceu! A brincadeira é cara, você não desiste, não cuida do seu futuro e nunca se dá por satisfeita. O que mais você quer? Você acha mesmo que 100 km a pé te farão compreender alguma coisa que já era pra ter aprendido em quarenta anos de vida?
– Trinta e cinco, por favor… O tempo por si só já passa depressa demais. Não careço dos amigos arredondando minhas experiências.
– Alê… Larga mão de ser perdida, esquece essa história de Espírito Santo e vem pra cá passar o réveillon com a gente que você ganha mais. Além do mais, não é certo você passar o Natal e o réveillon sozinha depois de tudo o que aconteceu esse ano.
– Eu não tenho do que reclamar, Alice…
– Isso está é me cheirando um “Comer, rezar e amar” de pobre… Isso sim!
– 🙂 Eu agradeço o convite pra passar o fim de ano novamente com vocês, mas vou peregrinar. Faz muito tempo que penso sobre isso, não tem nada a ver com paixão, com escrever, com nada disso. Só estou realmente precisando ficar um pouco sozinha e oxigenar a cabeça.
– E sair por aí caminhando sozinha vai ajudar?
– Ser obrigada a seguir em frente vai ajudar…
– Hum… É impressão minha ou isso ainda tem alguma coisa a ver com o Wil, Alê?
– Não, não tem… Está tudo bem quanto a isso. Mas me conta de você… Como estão as coisas por aí?
– Tudo bem… Eu e o Silvio vamos passar o Natal por aqui, mesmo esquema de sempre: sem família, sem comilança, sem papai Noel.
– … 🙂
– E se eu bem te conheço você vai de carro aí de São Paulo até Vitória… Acertei?
– Anram…
– Mil quilômetros de carro por essas estradas horrorosas, sozinha e nessa época do ano onde as pessoas bebem e se matam nos acostamentos… Ótimo pacote de viagem!
– Eu dirijo com cuidado…
– Ok, você quem sabe… Eu entendo que você adore dirigir, mas não entendo pra que correr tanto perigo à toa.
– E vou estar mais segura dentro de casa, assistindo os fogos de Copacabana pela TV e esperando a vida passar?
– Não… Mas você pode vir de carro e ver os fogos pessoalmente, pode passar o réveillon aqui com a gente. As estradas até o Rio você já conhece, são muito melhores e dá pra andar pela orla de Copacabana, todos os dias como se fosse peregrinação. O que acha?
– Eu já passei o Natal com vocês no ano passado. Se eu fizer isso de novo até a minha família vai começar a sentir ciúmes de você e do Silvio.
– O ano passado não conta… Você estava se separando, eu tinha acabado de receber o laudo da biopsia, estávamos todos muito abalados emocionalmente.
– Eu agradeço de todo o meu coração, mas encanei que tenho que ir até Vitória.
– Ok… Você sabe o que faz. Mas dirija realmente com cuidado, ok? A gente se preocupa com você.
– Obrigada, querida… Eu também amo vocês.

Alice é minha amiga há alguns anos, moramos em cidades distantes, mas é como se ela me conhecesse tão bem quanto minha família. Completamente independente e geniosa, ela é o tipo de mulher que se basta, alimenta um zelo muito especial pelo bem estar dela e do marido, mas é avessa as festividades e obrigações afetivas das famílias comuns. Sou deles uma espécie de amiga-passarinho, dessas que vive batendo as asas por aí, mas volta de tempos em tempos para cantar em suas árvores. E, sabe-se lá deus porque, mesmo eu sendo tão ausente, eles gostam de mim como se eu fosse parente.

Desliguei o telefone com o coração agradecido… Em momento algum ela falou ou me deixou falar sobre ela enquanto conversamos. Um ano de tratamento contra um câncer que a virou do avesso e ela parecia mais preocupada com a minha solidão do que com a própria recuperação.

Fui até meu quarto, enchi o mochilão de viajante com as roupas mais leves que podia, fiquei na dúvida sobre quantos tênis eram necessários em uma peregrinação e empurrei o mais velho e o mais novo junto com as roupas, para que o zíper fechasse até o fim. Joguei tudo dentro do carro, programei o GPS para ir de São Paulo a Barra do Jucu, na cidade de Vila Velha no Espírito Santo e uma sensação arregaçadora de medo me fez abraçar o volante e pensar em desistir.

E se eu batesse o carro? E se batessem no meu carro? E se eu morresse no meio da viagem? E se eu não aguentasse andar tanto e todos os dias? E se eu ficasse muito triste e não quisesse nem sair da pousada? E se eu estivesse errada e caminhar durante todo o trajeto da peregrinação fosse o mesmo que andar quatro horas seguidas em uma esteira automática? E se eu realmente estivesse fugindo? E se tudo isso fosse porque não consigo me livrar da culpa que sinto pelo fim da relação com o Wil? E se nada do que eu fizesse me desse a coragem necessária para encontrar um pouco de paz?

Um turbilhão de perguntas ruins invadiu minha cabeça, mas lembrei novamente da Alice, com seu cabelo raspadinho crescendo e a fazendo sorrir o dobro do que a fez chorar durante o ano que findava. Eu juro que sai de São Paulo sem fazer a menor ideia do que estava indo buscar em uma peregrinação, mas ali naquele momento dentro do carro, o que me fez dar a partida e seguir em frente foi uma única certeza…

Era dia 24 de dezembro e eu podia não ter coragem suficiente para ligar o carro e ir até o Espírito Santo, mas tinha para ir até o Rio de Janeiro, dar um beijo na careca abençoada da minha amiga e agradecer por ela estar viva e eu poder passar mais um Natal ao seu lado.

Não precisei reprogramar o GPS, a ida até a casa dela era familiar, mesmo que distante. Dei a partida, pisei levemente no acelerador e segui em frente. No mesmo instante, meu medo parou de me assombrar, sentou no banco do passageiro e colocou o cinto de segurança. Viajamos sem trocar nenhuma palavra… Pelo menos enquanto estivemos no Rio de Janeiro.

Continua… Aqui ó.



Postado por:Alê Félix
10/01/2012
7 Comentários
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Marcela Amorim

janeiro 12th, 2012 às 20:40

Nunca comentei seus textos, mas adoro todos eles! São lindos, emocionantes, divertidos 🙂 Parabéns e Obrigada!
Ansiosa para ler a continuação…


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Vitão Silva

janeiro 13th, 2012 às 15:33

Lindo… sem palavras!


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Andrelis Scheppa

janeiro 24th, 2012 às 13:12

ri muito alto das frases
– Peregrinação no Espírito Santo? Tá maluca!?
– Isso está é me cheirando um “Comer, rezar e amar” de pobre… Isso sim!

Ale amei o texto… e quero a continuação e também fazer um pedido… um paragrafo dedicado ao nosso encontro engracado, cheio de conhecidencias e conversa pomerana.

mil beijos…
e estou com saudades!


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Sandra

janeiro 29th, 2012 às 20:37

Alê, que prazer me dá ler o que você escreve. Esta é uma das maiores bençãos que um ser humano pode ter, pois é a pura expressão dos sentimentos, com o tempo e as palavras certas. Gostei muito. Parabéns!


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Juh Martins Oliver

janeiro 31st, 2012 às 0:49

Alê, nao conhecia seu blog, mais ja virei fã.


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Dani

janeiro 31st, 2012 às 1:18

Legal, gostei da história principalmente por falar de meu estado. Muito legal a história, gostei!


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