As horas se passaram assim, enquanto ele me esperava entre breves cochilos e despertadas…

Três da manhã, então. Acordo com o celular tocando e aquela tradicional sensação de quemcosô, oncotô, proncovô… Atendo. Ela chegou. “Vamos?” Checo todo o indispensável material necessário que arregimentei para uma viagem desse naipe, ou seja, a roupa do corpo. Celulares carregados (eu também gostaria de ter apenas um), carteira sem absolutamente um centavo sequer (lá deve ter um caixa rápido… TEM que ter!), tênis para andar nas desniveladas ruas de Paraty e – lógico – meu inseparável chapéu! Saio de casa e, ao passar pelo incrédulo olhar do porteiro (que deve ter pensado algo como “onde será que esse caboclo vai a essa hora, nesse frio e a pé?”), chego à rua e…

Cadê?

Olho para um lado, nada. Para outro, nada. “Vai ser a pior piada da face da Terra se isso tiver sido um trote… Pior: e se tiver sido um sonho?” – pergunto eu aos meus estarrecidos botões… E o porteiro esticando o pescoço pela janelinha, tentando ver o que eu fazia… Já começando a duvidar que realmente tinha recebido uma ligação comecei a andar rua abaixo quando vi um carro parado logo adiante, bem em frente ao condomínio do lado. Ok. Não foi um sonho. Ufa! ACE Ventura (que foi como batizei o carro naquele momento) havia chegado!

Parada em frente ao condomínio errado, aconteciam outros despertares…

Antes de começar a escrever minha parte dessa história, acho melhor contar um segredo meio esquisito. Não é nada grave mas, como se torna gritante durante algumas viagens, vale a explicação.

Dentro da minha cabeça moram duas vozes que raramente concordam uma com a outra e, nem sempre, comigo. Uma delas, a mais tranquila, tem todo o meu jeito. Ela pega leve a maior parte do tempo e é uma apaixonada nata. Gosto muito dessa voz, gosto da forma positiva que ela vê o mundo, dos detalhes que me conta e saca nas pessoas. É meio tonta, meio tagarela, meio confusa, mas é uma voz “do bem” e que convive bem com todo mundo. Quer dizer… Todo mundo, menos com a “do mal”.

A outra voz moradora da minha cabeça, foi apelidada de “do mal” por mim e pela “do bem”. A do mal é exigente, questionadora e racional aos extremos. Ela não dá mole nem pra do bem, nem pra mim, nem pra ninguém. Minha sorte é que ela não tem a menor paciência pra nós duas e acaba aparecendo pouco, graças a Deus. Quando aparece, deixa claro que despreza a do bem e que eu não me canso de decepcioná-la. Um dos únicos momentos que concordamos é viajando, é na estrada. A do bem ama cada téco de natureza desse planeta, cada olhar sobre qualquer universo, inclusive o universo de experiências e sentimentos que compõem cada pessoa. A do mal também, mas é muito mais prática, não curte perder tempo na vida. Ela sabe que viver tem prazo de validade e é assumidamente uma caçadora de prazeres, embora não seja facilmente conquistável. Pra variar, ela não vai muito com a cara dele, acha que nós dois temos defeitos meio parecidos e diz que o maior deles é não termos muitas qualidades. Basta eu lembrar que ele existe e ela surge do nada, de braços cruzados, dizendo que gosta mais dele escrevendo do que existindo. Desde sempre, sei que ela tenta me ensinar a viajar sozinha, me mostrar os encantos da liberdade absoluta, mas sem muito sucesso. Qualquer ser humano (tanto pra mim quanto pra do bem) é uma grande viagem. Algo que ela se recusa a entender, chama de prisão de luxo e me aponta um milhão de exemplos de humanos previsíveis e empatadores de emoções. As vezes, concordo um pouco, mas sei também que ela diz isso por egoísmo, por querer andar sozinha e assoprar os caminhos que deseja seguir, sem muita discussão. Ainda bem que quase sempre ela é voto vencido, já que qualquer estrada ou pessoa boa, ainda me divertem, ainda me causam bons arrebatamentos.

Naquele dia – assim que cheguei cantarolando com a do bem em Jacareí – tive a impressão de que a do mal só se ligou aonde estávamos quando olhei pelo retrovisor, o vi ajeitar o chapéu e caminhar na direção do carro. Foi só eu olhar essa cena e lá veio ela aparecendo de sopetão…

– E aí? – Saiu das profundezas do meu cérebro, riscando seu salto alto dentro da minha testa e cruzando os braços ao lado da do bem.
– E aí o quê!? – Assustou-se a do bem.
– Isso lá é hora de você aparecer? – Perguntei eu, já com vontade de mandá-la dar uma volta pelo meu fígado.
– É sério que vocês duas vieram parar em Jacareí a essa hora? Posso saber porquê não pediram a minha opinião?
– Ahhh, não enche do mal! Hoje não. Tô precisando de folga. Inclusive de você.
– Não é uma viagem qualquer… É uma “viagem de uma hora pra outra”!

A do bem se sente acuada por ela, vive justificando tudo, mas nesse caso fazia sentido. Viagem-de-uma-hora-pra-outra é, entre nós três, uma frase mágica que quase transformamos em uma palavra só e nos desperta a união. Era ouvi-la e concordávamos, amávamos de paixão cada instante, indiscutivelmente, desde quando éramos crianças.

– Vocês armaram uma viagem-de-uma-hora-pra-outra sem me consultar!? Sério?
– Se tivéssemos “armado” não seria uma viagem-de-uma-hora-pra-outra, né do mal?
– E desde quando vocês precisam ser convidadas, para aparecerem?
– OK. Mas são três horas da manhã e você está parada com o carro numa rua de Jacareí. Você sabe me dizer exatamente o porquê?
– Ela sabe! Vamos pra Paraty. Conhecer a Flip! – Acho tão bonitinho quando a do bem tenta me proteger da do mal…
– Hahahahaha! E você acreditou nela, sua mega-tonta!?
– Anram.
– Tsc, tsc, tsc… Arrááá! Eu sabia! Olha o do chapéu vindo ali! Eu sabia! Ela nem gosta muito de ler!
– Não gosto mesmo! Gosto de escrever, não gosto de ler e todo mundo tá careca de saber. Qual a novidade?
– É verdade… Esqueci que agora você não mente mais…
– Con-ti-nu-andooo, dona do mal: vamos pra Paraty pegar essa estrada linda que te fez dormir por um bom tempo, vamos ver amigos e passear por aquela cidade que mais parece uma poesia de tão encantadora. Tô indo comer peixe no Dona Ondina e passar horas naquela varanda que deixa nós três de bom humor. De repente até compro e leio um livro! Quem sabe? Se a promessa for boa, mudo de opinião. Mas vou pra experimentar cachacinhas, sentir um pouco de sol, de sal e me permitir viver um pouco além do…
– Ok, concordo com tudo isso. Só não entendo porque o grandalhão do chapéu tem que ir junto.
– Ele é legal, do mal…
– Isso! Porque ele é legal. E porque adoro gente que diz sim para os caminhos inusitados dessa vida, ao invés de viajar na maionese discutindo certo, errado e adequado dentro da própria cabeça e sem sair do lugar. A do bem tem razão. Ele é legal e topou uma viagem-de-uma-hora-pra-outra. Até hoje, quantas pessoas nós conhecemos que aceitaram e curtiram isso numa boa? Hein? Hein?
– …
– …
– Ótimo. Que bom que nós três concordamos.
– OK… Você que sabe. Quero só ver aonde isso vai dar. Aceitar – do nada – um convite, é uma coisa. Querer viajar junto, de verdade, é outra.
– Quer saber? Menos, do mal. E olha aqui… Isso é pra vocês duas e é muito sério: se abrirem a boca pra dar um piu durante essa viagem, eu juro que…

– Oi.
– Oi…

Fomos interrompidas pela entrada dele no carro. Retribui o oi, dei-lhe um sorriso com suspiro aliviado e me dei conta de que – tanto a do bem quanto a do mal – estavam erradas. Ele era mais do que um cara legal e até que tem ido relativamente bem existindo. Sei também que viajar junto e fazer uma boa viagem é das coisas mais difíceis, mesmo sendo por um curto período ou trajeto. A do mal tinha suas razões pra questionar pra onde íamos e com quem, mas precisava compreender que quem se joga na estrada as três da manhã com uma mulher que está no volante conversando com duas vozes do além, é no mínimo alguém de coragem. E isso, nós três sempre admiramos.

Foi assim, entre sorrisos e logo depois de ligarmos o aquecedor do carro pra espantar o frio que nós quatro odiávamos, que as duas silenciaram e passaram a fazer o que mais gostam: olhar a paisagem, mesmo no escuro, e seguir em frente. Quietas… Quietas e atentas. E me deixaram conversar só com ele, pelo menos por um tempo…

Continua nos próximos posts, tanto aqui como .



Postado por:Alê Félix
17/07/2011
2 Comentários
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*margaridanegra*

julho 18th, 2011 às 7:20

Ai Deus!
Que delícia de texto!
😉

Vcs são fodas! (ops, falei!)


[…] lá quanto cá, essa história ainda […]


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