Sonhei que uma moça de olhos bonitos jogava pedrinhas contra a janela do meu quarto. No sonho eu acordava com o barulho, abria a janela, desviava de um pedregulho e perguntava o que ela queria.

– Isso é hora de acordar os outros!?
– Antes tarde do que igual aconteceu comigo. Vem! Pula. Quero te mostrar uma coisa.
– “Pula”? Olha a altura disso! Quer que eu morra!?
– É exatamente por isso que quero te mostrar o que estou vendo daqui! Se você acreditasse na morte eu nem teria me dado ao trabalho de vir. Vem! Pula logo.

É claro que não pulei, mas me vesti e sai do quarto, caminhei seguramente até o quintal para ver o que ela queria.

– Pronto. Estou aqui.
– Como você é bunda mole… Nem dormindo você aproveita direito essa sua vida! Que pena você não ter pulado, menina! E olha que eu jurava que você faria tudo o que eu queria ter feito e… e esqueci.
– Desculpa a pergunta, mas… de onde é que a gente se conhece mesmo? Você não me é estranha, mas não consigo lembrar de onde te conheço.
– É sério!? Bom… Fazer o quê? Se você não me reconheceu assim que abriu a janela, vai compreender ainda menos se eu te contar. Vem! Vamos deixar essa sua falta de atenção e consideração pra lá e ir direto ao que interessa. Corre. Vem. Vem logo ver o que eu quero te mostrar, antes que você pare completamente de perceber tudo o que já deveria ser óbvio.

E foi então que ela me pegou pela mão e fomos as duas parar em um corredor que dava para duas portas idênticas, uma ao lado da outra, as duas com uns buracos de fechadura na altura dos nossos olhos.

Ela me contou que estava circulando por alguns corredores, encontrou aquele e o achou tão interessante que pediu autorização pra me levar até lá. Assim que o atravessamos, ela me pediu pra fazer silêncio e explicou que ali não era lugar pra opinião. Fez mímica para que eu escolhesse uma das duas fechaduras e a espiasse, tentasse ouvir as conversas. Eu obedeci, escolhi a da direita. Grudei os olhos no buraco da fechadura e fiquei atenta ao que diziam. Não conseguia ver nada além de vultos gesticulando como se estivessem discutindo, mas lembro bem do papo entre eles…

– Não! Do jeito que está não pode ficar. O número de pessoas entrando inconscientemente pela nossa porta está cada vez menor e isso precisa mudar o quanto antes. Vamos lá! Quero ideias novas para trazê-las até nós.
– O que você acha de espalharmos conceitos e criarmos situações equivocadas sobre o que é sucesso? Podemos fazer as pessoas acreditarem que precisam de aparência, muito mais do que essência. Se elas acharem que precisam comprar todas as coisas que vão decorar suas vidas de acordo com esse “sucesso”, vão acabar por gastar mais, explorar ainda mais umas as outras e trabalhar cada vez mais para manter os padrões que enfiarmos em suas cabeças. Isso aumentará o número de pessoas fazendo o que não gostam, cumprindo deveres e justificando o vazio de suas vidas com meras quitações de contas. Quanto mais elas trabalharem no modo automático, menos tempo para questionar o que importa. Maiores as chances de doenças físicas e mentais repentinas, maior a probabilidade de escolherem a nossa porta.
– Mas o que é que tem de novo nessa ideia? Já fazemos isso com elas há bastante tempo! Quero algo realmente novo.
– Ampliar o leque de distrações também não é novidade, mas sempre ajuda…
– Não sei… Desde que os nossos vizinhos tiveram a ideia da internet, tudo o que a gente tem feito é inventar distrações. O que todos nós estamos esquecendo é que, desde então, nossas ideias não passam de extensões para uma base que foi iniciada de acordo com os propósitos deles e não os nossos. Se for uma ideia como a última que tivemos, aí tudo bem.
– Qual? A das redes sociais virtuais?
– Sim, essa realmente tem cumprido muito bem o seu papel e feito muita gente perder o foco. Mas, mesmo assim, quero total atenção sobre qualquer invenção que precise ser colocada em prática junto com as que surgiram na porta ao lado. Tenho receio de que o tiro um dia saia pela culatra. Não consigo me livrar da impressão de que um dia a humanidade vai se dar conta dos nossos planos, dos planos da porta ao lado e adeus universo da forma como idealizamos.
– O que acha de aumentarmos as ilusões que decorrem das paixões? Quanto mais criarmos situações que façam crer em sentimentalismos, interesses e atrações superficíais, acredito que maior o distanciamento de si próprio. Ou algo que amplie o vazio que elas costumam sentir… Isso costuma aumentar a falta de sentido no dia a dia, a capacidade de perceberem o quanto desperdiçam tempo. Com isso, também passam a permitir que a vida dos outros e da maioria influencie em suas decisões mais do que o normal.
– Ok. Pode seguir nesse caminho, mas ainda é pouco. E quero mais resultados familiares. Quanto maior o vínculo, maior a chance de se ignorarem, decepcionarem e virem parar aqui. Entre desconhecidos, continuem apostando somente na criação de modelos que ampliem o número de celebridades meteóricas. Quero resultados iguais aos que conquistamos no começo dos reality shows. Os aplicativos de relacionamento também andam ajudando muito. Quero mais empenho nessa área! Quero criações que aumentem ainda mais a sensação de solidão, que continuem fazendo com que a maioria escolha caminhar junto por motivos equivocados e passem bem longe da contribuição na evolução um do outro.
– Se me permite… O que acha de trabalharmos nessa ideia maluca que eles têm de que podem escapar da morte ou de inconscientemente achar que vão viver mais do que todo mundo que conhecem? Quanto mais as pessoas adiarem o que é importante, sempre com a ilusão de que terão mais um dia de vida, maior a chance de não fazerem absolutamente nada.
– Hum… E o que você sugere?

Num estalo, lembrei de onde eu conhecia a moça dos olhos bonitos que estava ao meu lado e quebrei o silêncio que ela havia me pedido.

– Vó! É a senhora! Mas você tá tão novinha… Que foi que aconteceu? Onde é que a gente tá? Ontem mesmo a senhora estava na…
– Shiii… Fala baixo. Você está sonhando, eu continuo na UTI. Quis aparecer no seu sonho assim porque queria que você visse quem eu era numa época que tudo dentro de mim ainda fazia algum sentido. Depois desse tempo… Depois disso as pessoas que eu conhecia, todas as dificuldades do dia a dia… Tudo meio que foi se perdendo. Não pense que estou dizendo isso por arrependimento. Eu permiti que tudo se tornasse maior e o que fazia sentido menor. Não foi culpa de ninguém, nem minha. Mas a verdade é que agora, aqui de onde estou, vejo que em muitos momentos eu me perdi por pura distração e sensação de que eu podia escapar da vida e da morte. Sei que você vai achar tudo muito confuso, mas não encontrei outra maneira de te explicar. Só não queria que você cometesse o mesmo erro, não queria que você desistisse.
– Mas… Desistisse do que vó? O que é que tem dentro dessas portas? A gente pode entrar? Quem são essas pessoas que eu acabei de ouvir? Por que nessa daqui eles querem que a humanidade pare de prestar atenção em si própria? O que tem na outra?

Ansiosa, fui olhar pelo buraco da outra porta. Minha vó tentou me segurar, me contar que eu já havia escutado aquela história em outros cantos, que ali ela só estava me recontando o que eu já intuía, mas não a ouvi . Colei o olho na fechadura da outra porta e, do lado de lá, vi a minha própria imagem se aproximando da porta, sorrindo e a abrindo. A maçaneta virou, eu acordei. Acordei e vim até o hospital. Ela ainda dorme… Acho que eu também.



Postado por:Alê Félix
10/06/2015
1 Comentários
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Amanda

junho 14th, 2015 às 0:15

Que texto incrível! Incrível.


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