Em qualquer bairro da periferia de São Paulo, dois movimentos eram levados muito a sério nos anos oitenta: a organização da vizinhança pra alugar ônibus e ir de caravana em enterro de celebridade e a organização da vizinhança pra alugar ônibus e ir de caravana no programa do Silvio Santos.

Graças a Deus e o mínimo do bom senso, os passaportes para as caravanas dos enterros nunca interessaram nem a mim nem a ninguém da minha família, mas… alguns segredos do passado precisam ser desenterrados…

A escola onde eu estudava também fazia caravanas para os programas do SBT, mas eu jamais me atreveria a ir com colegas de classe em uma delas. De jeito nenhum! Qualquer adolescente que fizesse algum comentário sobre as atrações apresentadas pelo Silvio Santos, mesmo sabendo que TODO mundo assistia, era taxado de alienado ou mega pobre.

– Credo! Você assiste isso? Programa de pobre, hein? Cabecinha…

Uma coisa que só quem mora na periferia sabe – e pode parecer completamente bizarro pra quem é de fora – é que até dentro de favela, existe divisão pra ver quem é o menos pobre e quem é o mais pobre. Eu, particularmente, me considerava a nata da ala nobre, cool e intelectual do Jardim São Francisco e da escola estadual de primeiro e segundo grau que estudava no bairro do Socorro. Ou seja, nem morta, eu me enfiaria em uma daquelas caravanas ou diria que fiz outra coisa no domingo, que não fosse algo de matar minhas amigas de inveja e os meninos de admiração.

Eu me orgulhava por ter recusado passaporte até pro Domingo no Parque, embora – em segredo total e absoluto – eu fosse alucinada pra entrar naquele foguete, esperar a luz acender, dizer NÃOOOO “para os espelhinhos velhos que não valiam nada” e SIMMMMM para “todos os brinquedos do programa mais uma super-ultra bicicleta sem rodinhas”.

Até os quatorze anos de idade eu aguentei bem e disse não para todos os convites. Era tranquilo, até que minha melhor amiga terminou com o namorado, entrou na maior fossa e me encheu a paciência dizendo que queria porque queria ir na caravana pro Show de Calouros. Ela era apaixonadíssima pelo Sylvinho, um cantor na linha do Fiuk e que na época bombou em tudo que era rádio com a música “Meu Ursinho Blau-Blau”. Pois é… Era uma letra quase gay, de um cara pedindo pro seu ursinho fazer a namorada voltar pra ele. Eu passava horas com a minha amiga tentando convencê-la de que a letra era completamente anti-sexy na voz de um cara, mas ambas concordávamos de que era impossível resistir ao sorriso do Sylvinho.

– Lu, na boa, um cara que diz “AI… AI! Meu ursinho Blau-Blau de brinquedo… Vou contar pra você um segredo… Só você mesmo pra me aturar”, é menininha!
– Mas o que ele diz em seguida? O que? Hein? O que? “AHH… Esse meu coração tão vadio” Concorda comigo que “coração vadio” é másculo?
– Galinha sim, másculo não.
– Ok… Olha o resto “se amarrou nesse corpo macio, ela quer é me fazer pirar…”
– Pura poesia…
– O cara é lindo!
– Lindo… Não tô discutindo beleza física! Mas se é pra pagar mico cantando musiquinha, faz igual ao Wando!
– Ahhh, claro! Mil vezes melhor “Quero te pegar no colo, te deitar no solo e te fazer mulher.”.
– Isso não é Wando! É Agepe!
– Tudo igual! E tudo homem feio!
– Não tô discutindo beleza física!
– Tá bem… Se você acha o Wando legal…
– Só tô dando exemplo de letra que vale a pena cantar e pagar o mico.
– Você vai ou não vai no Show de Calouros comigo?
– Claro que não!
– E no Qual é a Música?
– Nunca!
– Parece que essa semana quem vai no Qual é Música é o Sylvinho…
– Nem morta!
– …
– Não.

Eu não sei direito como foi que essa conversa levou a outra e mais outra e uma aposta e quando vi eu tinha perdido e estava sendo guiada pelo Roque para sentar na primeira fileira do Show de Calouros, disputado entre Sylvinho e Naim.

Minha amiga eufórica e eu morta… De vergonha!

– Roque, por favor, desculpa… Mas eu prefiro sentar beeem lá no fundo.
– Nãããoooo, minha filha… De jeito nenhum! É ordem da casa. A gente tem que separar “as bonita” e colocar tudo sentadinha na primeira fileira.

Vaidade é uma merda… Ouvi isso, dei um sorrisinho pro Roque, sentei na primeira fileira junto com minha amiga gata e mais um monte de linda, me achando. Silvio Santos é um hipnotizador de pessoas… Se ele dissesse “agora todo mundo plantando bananeira”, aquilo teria virado uma aula de yoga numa fração de segundos. Até eu – que achava que pensava – minuto depois dele chamar o Sylvinho pra cantar, estava me prestando ao papelão de cantar e pular em frente das câmeras… Não gritei. Mas dei umas boas sacudidas.

Sabendo que estávamos no banco das mais lindas, era como se um espírito de miss debilóide invadisse nossos corpos. Nossas poses diante das câmeras variavam de meninas sérias, para sorridentes com miradas sexys. Era ridículo, mas tenho que admitir que foi divertidíssimo. Eu não lembrava mais de nada do que havia pensado até então, só curtia as músicas, as brincadeiras do Silvio e o momento. Se me dessem um papel pra assinar que eu era presidente do fã clube do Naim ou do Sylvinho, eu assinava na hora. Quando começaram os quadros que precisavam da participação da platéia, o segredo musical proposto pelo Silvio era a palavra “louca”. Ou seja… Tava pra mim! Era só eu correr até o microfone e cantar alguma música que na letra tivesse aquela palavra. Com a minha cabeleira morena e franja cortada no estilo da franja da Angélica, vestida na última moda com meu blazer listrado de branco e amarelo, dotada de toda a desenvoltura de quem não faz a menor ideia da merda que está prestes a fazer, soltei…

– Você é luuuz. É raio estrela e luaaar. Manhã de sol. Meu iaiá, meu ioiô. Você é sim… E nunca meu não. Quando tão LOUCAAAA. Me beija na boca. Me ama no chão…

E o seu Silvio Santos…

– Não sei que música é essa… Você só sabe essa parte? Canta mais um pouco pra eu ver…

O mundo inteiro sabia que música era aquela. Óbvio que era brincadeira dele, mas…

– Como assim não sabe, Silvio!? Ó… prestenção! Me suja de carmim…
Me põe na boca o mel… LOUCAAA de amor, me chama de céu ohohohoh… E quando sai de mim… Leva meu coração! Você é fogo… Eu sou paixão. Viu?
– Meu bem… Que eu sou fogo eu já sabia. Mas que você é a paixão eu só tô vendo agora! Rooooque! Paga pra ela Roque!

E eu lá… com meu sorriso de tonta achando o máximo e vibrando com a bolada que levei no momento seguinte, quando ouvi a chamada para que o Pablo cantasse qual era o segredo musical: Wando! Fogo e Paixão. Na cabeça! Voltei pro microfone pra receber meu prêmio…


– Qual é mesmo seu nome, meu bem?
– Alessandra…
– E de qual caravana você é?
– Do Jardim São Francisco…
– Uma salva de palmas pra caravana do Jardim São Francissssco!

E quem disse que eu fui embora quando acabou o programa? Quem quisesse ir, poderia ter ido, mas naquele dia eles gravariam mais três programas: outro “Qual é a Música”, um “Tudo por Dinheiro” e o “Roletrando”…

– E você ficou na fileira das mais bonitas em todos eles?

Me perguntou o WANDO – vinte anos depois – sentando ao meu lado, num voo do Rio de Janeiro pra São Paulo e que acabou virando café, a descoberta de alguns amigos em comum e uma porção de gargalhadas entre uma conexão e outra no aeroporto de Congonhas…

– Não só fiquei na fila das mais ajeitadas como ganhei uma bolada no Roletrando e outra grana boa na brincadeira das gavetas que saiam cobras do Tudo por Dinheiro.
– HAHAHAHA… Mentira…
– Sério! Comprei até uma bicicleta na época.
– E o senhor Silvio Santos te chamou três vezes seguidas para participar das atrações!?
– Pois é, Wando… Isso foi complicado… Por causa disso eu fui odiada no meu bairro por um tempo. Mas putz… Não foi por mal. Ele perguntava quem queria participar, eu levantava a mão e ele escolhia… Com quatorze anos, cê acha que eu ia pensar “não, eu já brinquei, vou pedir pra sair…”.
– Caiu nas graças do patrão!
– Foi divertido…
– Mas Alê… E aquela história de que você não ia nas caravanas para o SBT porque não queria a fama de alienada na escola? Todo mundo da escola deve ter visto quando o programa passou na televisão, não? Como é que você fez depois de ter aparecido em quatro programas seguidos?
– Ué… Não fiz. Disse que não era eu!
– Como não!? Caravana do Jardim São Francisco, Alessandra, blazer listrado de branco e amarelo… Quem mais?
– Wando… Você me perguntando isso? Você é um romântico… Um poeta! Você sobe no palco e canta! Como é que um cara que dedica a vida a cantar as e para as mulheres… Me pergunta uma coisa dessas? Você sabe melhor do que ninguém que é só negar até o fim, Wando! Muito mais fácil convencer um bando de adolescentes de alguma coisa do que convencer mulheres de algo que você queira.
– Ahh, não é mesmo! Se eu disser que não era eu na televisão, ninguém acredita.
– Se eu subir no palco e pedir pras malucas jogarem as calcinhas, também não, né!?
– HAHAHAHAA…
– Mas e o Naim, hein? Que fim levou?
– Nunca mais vi! E o Ovelha?



Postado por:Alê Félix
08/02/2012
5 Comentários
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*margaridanegra*

fevereiro 8th, 2012 às 14:43

Sensacional!


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*margaridanegra*

fevereiro 8th, 2012 às 14:59

Só mais uma coisinha…
Você deixou sua calcinha com ele nesse dia?
hihi


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Viva

fevereiro 8th, 2012 às 15:23

Alê, como sempre, suas crônicas bem humoradas são deliciosas! E ainda tem a foto com o Wando pra provar!
Beijo.


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Pablo S.

fevereiro 8th, 2012 às 17:27

bacana foi essa foto: o wando com cara de wando, e a alê com cara de quem viu o silvio santos!


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Marcinha

fevereiro 8th, 2012 às 22:22

Que ótimaaaaa… Todo mundo um dia já negou algo que estava na cara que fez…. Amei o texto
Beijão.


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