Acho que é por sentir o mesmo que o Ansel Adams que nunca me apaixonei por ninguém que não tivesse o mínimo de noção fotográfica. Eu sei que parece bobagem, mas se o rapaz escrevesse e fotografasse direitinho sempre dava um bom norte pro meu coração. Ele podia ser açougueiro, imperdoável seria se cortasse a cabeça de alguém nas fotos de família. Podia ser o moço mais lindo… Era só através do olhar e das palavras que não eram ditas da boca pra fora, que a alma do lindo se revelava pra mim.

É assim até hoje, embora eu mantenha o pé atrás diante de grandes artistas. Gosto dos amadores, dos descompromissados, dos que nunca precisaram transitar entre a iluminação e a humilhação de um processo de criação. Gosto dos que fazem arte por necessidade de arte! Aquele tipo de ser aparentemente comum que passa a semana toda disfarçado no meio da multidão engravatada e só precisa de um fim de tarde bonito para sair da toca, pensar, criar e dormir feliz. É desses moços que eu gosto… Moços que nunca tiveram que sarar de depressão por falta de criatividade, nem lidar com os mínimos detalhes que podem transformar o dom em desastre. É… nunca gostei dos profissionais. Morro de admiração, mas nunca desejei morrer de mãos dadas com um deles.

Ok… Estou mentindo. Já gostei… Mas foi um sofrimento. Éramos muito garotinhos, eu só sabia o nome dele de ouvir e achar diferente na hora da chamada. Na hora do recreio ele nunca se misturava e eu achava que fosse por pura timidez, não porque era a hora que ele podia fazer o que mais gostava. Xereta, fui até o canto que ele se enfiava pensando em resgatá-lo para o convívio social no parquinho da pré-escola. Cheguei perto, já ia me apresentar e convidá-lo pro gira-gira, mas espiei os desenhos antes de falar e me vi desenhada em vários rabiscos de giz de cera nas folhas de sulfite. E eram todos tão surpreendentes que o meu único impulso foi roubar uma das folhas, sair correndo e mostrar pra professora…


– Annnnnnnn! Que lindo!
– …
– Qual o seu nome mesmo!?
– … Kevin… Por que?
– Nada não… Já venho!
– Eeei, meu desenho! Me devolve!
– Professora! Professora! Olha isso! Olha que lindo que o Kevin fez! Olha, professora! Duvido que a senhora já tenha dado aula pra alguma criança que desenha bonito desse jeito! Olha! Olha, professora!

E ela não olhava… Estava ocupada corrigindo as provas da turma dos mais velhos…

Roxo de vergonha, ele veio até mim, pegou o desenho de volta, pediu que eu prometesse nunca mais fazer aquilo e se tornou meu melhor amiguinho de escola. Passei os dez anos seguintes não cumprindo a promessa, mas ele me perdoava… Dizia que era fácil enxergarmos talento em quem a gente ama e ignorava o fato de que tentei mostrar os desenhos dele para o “deus” do nosso pequeno mundo, antes mesmo de saber pronunciar seu nome.

Kevin era brilhante não só desenhando, mas com tudo o que tocava. Desenhava com o coração, escrevia pra pedir perdão, me fazia ouvir som de gaita como se fosse possível traduzir em palavras o que cada dedilhada dizia. E achava que não fazia nada de especial, mesmo quando era capaz de modelar suas piores más intenções em pedaços de Durepox, só para fazer alguém sorrir…

Acho que tanto falei, tanto admirei, tanto mostrei que um dia ele acordou e acreditou que tinha pelo menos um grande talento. Deixou pra lá os desenhos, as telas, entrou como quem não quer nada em um concurso de fotografia e o ganhou com uma foto que fez a faculdade inteira o aplaudir de pé. Naquele dia, ele parou de brincar e virou fotógrafo. Foi um sucesso tão absurdo que ele dizia que havia se descoberto talentoso como quem acha uma caixinha mágica e não quer mais parar de abri-la. Toda a alma exposta nos desenhos depois de horas de dedicação, ele buscava na fração dos segundos das fotografias… Toda a delicadeza que os traços lhe davam, o enrijeciam com química, êxtase e insatisfação com os resultados no laboratório fotográfico. E ele mudou… Parou de sorrir enquanto criava, passou a buscar perfeição e aceitação.

Com o passar dos anos era como se ele tivesse exercitado tanto a sensibilidade que passou a ignorá-la ou explorá-la. E eu olhava e via claramente que era vício… Que tudo que se faz em excesso para gozar ou comer, deixa lentamente de ser uma caixinha mágica pra se tornar qualquer coisa oca e confusa feito nossa própria cova. No final, olhar pra ele ou suas obras me dava sempre um sentimento de que um dia foi de verdade, um dia ele chorou, sorriu, pintou, fotografou e escreveu pela simples necessidade de transformar as emoções… Um dia, houve uma alma que era tão grande, tão grande que lhe escapou pelos olhos, mas podia ser sentida até sobre os poros. Um dia, alguém – assim como eu – gostou tanto, tanto do que viu que achou que o conhecesse há séculos e que suas fotos podiam atravessar os próximos…

– É isso! Finalmente o que eu sinto vai parar de bater somente dentro de mim!
– Nunca bateu somente dentro de você… O volume sempre foi alto demais. Ela teria que ser muito surda pra não ouvir…
– Mas agora todos vão ver quem eu sou!
– O que você é?
– Tudo o que eu sinto… Vejo…
– Você não é mais o que você sente… Você virou o que você quer, não o que sente.
– O que eu quero e sinto é o que faz de mim quem eu sou.
– É por você ou é pelo que você sente?
– Eu só quero que todos vejam! Pode parecer vaidade, mas não é uma coisa ruim. Você está falando como se fosse ruim querer ser reconhecido.
– Qual o preço que você vai ter que pagar pra seguir o caminho desse reconhecimento?
– Eu pagar!? Não! É a primeira vez que vou receber de verdade!
– Qual o preço que você vai ter que pagar?
– Você não entende…
– Qual o preço que terá que pagar?

– Não dá pra viver vendendo tela de pintura…
– Eu nunca disse pra você deixar de fotografar pra viver do que pinta…
– Com fotografia dá pra eu me manter…
– É pra manter você ou é pra manter o que você sente?
– Eu quero mais do que isso…
– E o que você quer?
– …
– É disso que você precisa?
– …
– Sabe o que eu sinto? Quando te vejo pintar é como se estivéssemos novamente no parque da escola… Você dizia que pelo meu sorriso dava pra saber o quanto eu gostava do que você fazia. Mas a verdade é que mesmo gostando de medir minha opinião através dos meus sorrisos, só um sorriso bastava para transformar tudo o que explodia dentro de você em arte… O seu! O sorriso de satisfação que você ainda dá quando começa e quando acaba uma tela. Aquele, quase de orgasmo, que te dá a sensação de missão cumprida depois de acertar todos os detalhes e ver diante de você todo o turbilhão de pensamentos que antes batiam somente no seu peito, transbordando no papel. Esse sorriso não precisa ser o único, mas deveria ser o único a determinar o que precisa ser feito. Se é essa a sua arte, só o seu sorriso importa, mesmo se ninguém quiser ver, mesmo se todos mostrarem a língua pra você.
– Eu não quero ver sozinho…
– Fotografar nunca te fez feliz…
– Mas faz as pessoas pensarem…
– Te faz bem? Te traz qualquer tipo de realização, além de ser reconhecido?
– …
– Todo artista sempre será o primeiro espectador de sua obra… Se você não se tornar fã ou nem sequer sentir algum tipo de bem estar pelo que fez, vai adiantar ser aplaudido por outras pessoas?
– Desculpa… Eu preciso trabalhar…
– Ok.

E lhe pagaram o almoço, a janta, roupas novas, carros possantes, um lindo apartamento no topo do mundo, uma passagem aérea que o levou para bem longe dos sonhos de garoto sonhados no parquinho da pré-escola… E eram tantas pessoas e tantos lugares e tantas perguntas com respostas reticentes, tanta distração o distanciando do que realmente importava que – mesmo sem ter deixado nenhum bilhete – tenho certeza absoluta de que foi assim que ele perdeu de vista a própria alma.

Também foi assim que eu o vi partir… Sem nunca ter sido um simples e grande pintor que sorria diante de suas telas, ou o cara comum que saia para fotografar o pôr do sol com os amigos, mas depois de ter se tornado um grande fotógrafo e se jogado do décimo segundo andar de um prédio de luxo, sem nenhum porta-retrato na estante, mas repleto de obras de arte nas paredes.



Postado por:Alê Félix
07/02/2012
1 Comentários
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*margaridanegra*

fevereiro 7th, 2012 às 18:39

*___*


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