Se tinha uma frase que eu curtia muito ouvir era “Essa menina vive fazendo arte!”. Amava. Desde sempre. Sabia que os adultos diziam isso porque eu não fazia o que eles queriam, mas lembrava das aulas de educação artística e deixava a bronca entrar por um ouvido e sair pelo outro. Achava que finalmente havia aprendido a lição…

As aulas de matemática fundiam o meu cérebro e me deixavam deprimida, as de educação artística me faziam brilhar, nem que fosse melecando a cara na purpurina. No começo não, no começo das aulas eu era muito tímida. Mas desde sempre me parecia claro que, quando diziam pra uma criança que ela vivia fazendo arte, ela estava no caminho certo.

Nesse fim de semana encontrei com um professor que me deu aula na quarta série do primário. Eu estava dirigindo, ele caminhando, o reconheci como se nenhuma década tivésse atravessado nossas vidas. Parei o carro, corri atrás dele no meio da rua, nos abraçamos, lacrimejamos, sentamos pra conversar.

Tão velhinho que ele está… E foi um homem tão atuante nesse mundo, tão político, tão pacificador, tão pensante. Aí, ele me conta que a professora de educação artística faleceu recentemente…

E lembramos daquela senhora rechonchuda que levava pra aula um radio toca-fitas, fitas com gravações de trilhas sonoras de filmes como Hair, Tommy e tudo que ela mais amava. Colocava várias cartolinas penduradas na parede ou espalhadas pela sala, folhas de sulfite, canetas e canetinhas coloridas por todos os cantos, tintas, guaches, bambolês, e tudo mais que lhe desse na telha e tivesse disponível para suas aulas. Ela ligava o som, mandava que afastássemos as cadeiras e mesas e gritava: “Libeeeertem! Libertai-vos! Liberte sua imaginaçãããoooo… Agoooora!”.

Era criança pulando, correndo, desenhando, escrevendo, dançando, girando… E a maluca orquestrando a baderna com as mãos, cantando junto com o toca-fitas em tons de voz que eram sempre muito engraçados. Um espetáculo que durava uma meia hora, até que ela colocava um por um pra arrumar a bagunça, ordenava o silêncio e a obrigação que pediam os livros, até que tocasse o sinal para a próxima aula e próximo professor. Enquanto acalmávamos o espírito e a obedecíamos, ela cantarolava baixinho uma música que só não nos fazia rir, porque morríamos de medo dela. Era uma professora excêntrica, não tinha nada de boazinha…

Na primeira aula não consegui pular, dançar, desenhar… Fiquei quieta na minha cadeira olhando os outros alunos “libertarem suas imaginações”. Ela me deixou quieta, observando, por umas três aulas, até que um dia sentou ao meu lado e, no meio da folia,  me perguntou:

– O que você vê?
– Eu acho essa aula bonita…

Foi então que depois de um breve suspiro e olhar que se perdeu nos meus olhos, ela me ensinou sobre a arte de contemplar a arte…

– Então, vamos aprender a aplaudir?

Um minuto depois, ela batia palmas, eu batia palmas, a sala inteira batia palmas. No final, lembro dela ter feito um breve discurso sobre a importância de aplaudirmos não só a arte dos artistas, mas a arte de viver, que cada um de nós desempenhávamos respirando, sonhando, desejando, estudando, amando, trabalhando, sobrevivendo, construindo, criando filhos, reinventando as manhãs…

Foi assim que passamos a encerrar o tempo de libertação batendo palmas pra nós mesmos e para o resto da humanidade fazedora de arte.

Tímida pra burro, nas aulas eu ficava quieta, em casa fazia tudo o que os outros faziam quando ela mandava. E adorava que minha família achasse aquilo uma baderna e dissesse que eu vivia fazendo arte, pois era isso que a professora mais repetia que fizéssemos…

– Vivam! Vivam para fazer arte! Fazer arte não é fazer coisa errada! Chamem os pais de vocês para fazerem arte juntos! Fazer arte é ter uma imaginação forte! Saudável! Fazer arte é pintar! Arte é dançar! Arte de escrever, cantar, pular, amar, criar, salvar, arriscar… E nos fazia continuar a busca pelas ações mais gostosas, até que o sono chegasse e descansássemos em paz.

Me sinto aliviada de ver que eu era péssima em sala de aula, mas nunca deixei de fazer a lição de casa… Até reencontrar meu velho professor caminhando na rua, a professora de arte estava esquecida pelos cantos da minha lembrança. Saber que ela está morta e conversarmos tanto sobre a forma como ela vivia, fez com que a desenterrássemos e agradecêssemos por suas lições.

Obrigada, Guiomar… Saiba que continuo tentando viver fazendo arte mas, quando não consigo libertar minha imaginação, ainda carrego comigo o dom de bater palmas.



Postado por:Alê Félix
20/07/2011
7 Comentários
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Rafael Dourado

julho 21st, 2011 às 15:45

Preciso ter cuidado ao ler seus textos, Alê. Devem ser lidos em ambiente protegido, livre de desconhecidos que o olhem estranho por você deixar umas lágrimas escorrerem enquanto corta o cabelo olhando para o celular. Fui pego desprevenido. Logo quando ando pensando tanto em arte e me envolvendo cada vez mais com isso. Gostei muito, de verdade. Beijos.


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marina

julho 21st, 2011 às 19:38

Que bom foi ler este texto! Obrigada.


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*margaridanegra*

julho 22nd, 2011 às 6:48

Eu derramei lágrimas aqui…

😉


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*margaridanegra*

julho 22nd, 2011 às 6:49

e vou publicar no meu blog, tá?!?!!
😉


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Julia

agosto 2nd, 2011 às 13:30

Excelente! *-*


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jaime silva

setembro 18th, 2011 às 10:37

Esse seu texto me fez lembrar de uma música de Bily Blanco, “o que dá pra rir, dá pra chorar / questão só de pêso e medida… / questão só de hora e lugar…/ mas tudo são coisas da vida”.
Nem preciso dizer que dei uma choradinha, também.

Abração e obrigado.


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Alê Félix

setembro 18th, 2011 às 17:33

Jaime Pai! Queria que você soubesse que é um orgulho ler tudo que tem escrito pra mim. Faz tempo que estou pra agradecer. Sou amiga do Jaime há anos e tê-lo como se fosse minha família e ser muito grata por tudo que já aprendi com ele, sempre fez com que meu carinho se estendesse a cada pessoa que contribuiu para que ele seja quem ele é.

Adoro a família de vocês, parabéns pela arte da sua vida, viu?

Um grande abraço e obrigada pelas palavras. Tomara que um dia possamos todos sentar numa boa mesa pra rir e conversar sobre todas esses bons encontros da vida.


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