Já tem um tempinho, um ou dois meses, estive no escritório da trupe O Teatro Mágico. Não os conhecia, embora já tivesse ouvido falar. Também não lembro exatamente o que ouvi, mas frases soltas vinham à minha cabeça, mais ou menos, assim “são palhaços que cantam”, “é o novo Legião Urbana”, “o público dos caras é fanático e de alma vazia, comprariam qualquer idéia um pouco mais revolucionária”. Não dei muita atenção. Não por desrespeito às pessoas que disseram – já que nem me lembro de onde vieram as vozes – mas porque raramente dou ouvidos sem ver, ouvir e sentir por mim mesma. As críticas ficaram na memória, mas eu queria ver com meus próprios olhos o Renato Russo, vestido de palhaço, encantando almas vazias.
Cheguei ao Memorial da América Latina, com uma amiga que também não os conhecia e, antes de entrar, me perguntou por que o nome “O Teatro Mágico”. Na dúvida, com medo de entrar numa roubada, o que ela queria era ter a certeza de que não acabaria a noite de sábado enfiada numa espécie de festa infantil. Entramos na fé: ela esperando que a noite valesse a pena, eu esperando que eles não fossem menores do que a minha intuição dizia. Eu não queria que fosse mais um show, queria acreditar neles…
Quem me conhece e, talvez aqueles que sacam um pouco do meu trabalho, sabem o quanto me empenho para ver livre o que nos resta de arte nesse começo de século. Desde 2001, quando comecei com a idéia de publicar livros de escritores que estavam surgindo através da internet, repito incansavelmente que ainda há no mundo uma porrada de cordas pra gente rebentar, um mundão de tranqueiras e asneiras pra gente transformar. Hoje, depois de tantas mudanças na minha vida pessoal e tanto aprendizado, mesmo quando me falta fé, ando com a sorte abençoada de atrair pessoas que admiro e respeito pelo olhar e pela postura diante da vida. Entrei no Memorial da América Latina com a mente aberta, desejando que o encontro me encantasse. Aí o show começou…
Logo na primeira música, a voz de Fernando Anitelli (cantor da trupe) se misturou com a voz do público que lotava impressionantemente o Memorial. Digo que é impressionante porque eu sabia que eles eram um grupo sem patrocionadores, sem jabás, só com a internet e o suor a favor deles. E era uma multidão de jovens, velhos e crianças, mas tão unida, que podia estar facilmente disfarçada de uma única geração. O som contagiava pelo ritmo e pela vibração das pessoas. Foi impossível ficar sentadinha e arrumadinha na cadeira que gentilmente me ofereceram. Levantei, grudei no palco e não demorou muito para que a minha alma vazia se rende-se aos acordes, às cores e ao coro. Aliás, que coro… O público do grupo é parte do show e não há imbecilidade maior do que dizer que aquelas pessoas comprariam qualquer idéia. Eles não compram nem CDs! Eles acompanham a trupe exatamente porque Fernando canta liberdade, canta poesia, oferece de graça a leveza que nos falta no dia-a-dia. Não, não é por pão-durice que eles não compram. A relação com a música é outra e todos ali falam a mesma língua.
Eu tenho um coração facinho para quem me faz rir, crer e pensar… Vivo dizendo isso, alguns de vocês já sabem. Meia dúzia de músicas depois, eu já estava sacolejando, sorrindo, questionando, batendo palmas. Às vezes, sou resistente as palmas… Não gostei da iluminação. Queria um pouco mais de luz para ver cada detalhe do palco, cada ator, palhaço, músico, malabarista, contorcionista, cada cor ou ausência de cor. A acústica do lugar me irritava toda vez que eu não entendia as letras. As letras… Por mais legal que seja a mistura de maracatu, hip-hop, samba, rock e o som que dá na telha de eles fazerem e que tira total a nossa bunda da cadeira, eram as letras que eu queria ouvir nitidamente no meio daquilo tudo. Precisei chegar em casa e fuçar na internet atrás delas… Que menino danado esse Fernando! Que povo bacana e talentoso ele conseguiu reunir ao lado dele. Lembrei das várias vezes que ouço dizerem que a geração atual é burra, perdida, acomodada, vazia… Lembrei que a geração dos anos setenta teve que lutar para existir, a dos anos oitenta para crescer, a dos noventa para não morrer, mas e agora? Agora que tudo parece conquistado, temos a impressão de que não há mais pelo que lutar, não é mesmo? Que ilusão! Como achar que não há nada para mudar em um mundo ditado por consumismos, dinheiro por dinheiro, ditaduras aparentes e amarras comerciais e emocionais? Como as pessoas podem achar que não há nada acontecendo quando há toda uma gurizada quebrando códigos, construindo novas ferramentas, novas linguagens, lendo uma rede de informações, ao invés dos livros que a seção dos “mais vendidos” diz para eles lerem? Só porque eles ouvem o que eles querem e compram apenas quando vale a pena usar? Só porque eles não estão nas ruas com bandeiras em punho? Que estupidez achar que a aparente apatia de um adolescente – escondido no escuro do seu quarto – não pode ser iluminada pela arte, comunicação e elevação através de downlouds e janelas redesenhadas!
O Teatro Mágico não é um grupo de palhaços que cantam. São pessoas simples, da periferia, gente comum que não teria muito espaço no mundo se não fosse realmente boa no que faz. Mas você pode não gostar… Gosto é gosto apesar do meu desgosto quando não gostam do que eu gosto.
O show acabou e segui para a coletiva que eles dariam para a imprensa. Não se impressionem. Tudo o que o grupo conseguiu foi de forma independente, graças à internet. Lá, não estava a Rede Globo ou a MTV. Estavam a TV IG, TV Vírgula, TV Gospel… Não, nem pense! O “Deus” do “Teatro Mágico” é a fé que nos move, não o “Deus” da igreja dali ou daqui. Os mais fiéis devem curtir pelo simples fato de que a liberdade da trupe é tanta que ela não oferece julgamentos, ela abraça e agradece a quem vai até ela.
Assisti à coletiva por curiosidade, até o fim. Queria ouvir mais dos integrantes, conhecer melhor aquelas pessoas que, de alguma forma, eu estava atraindo. E ouvi o repórter perguntar para o Fernando por que eles não iam para uma gravadora. Ele, bem humorado, com um puta trabalho sério (sério de bem feito, de respeito, cheio de peito), do jeito dele, respondeu algo, mais ou menos, assim:
– Quando uma gravadora nos perguntou por que não queríamos trabalhar com eles, já que estávamos indo aos shows de bicicleta, respondi que era porque nós assistimos ao filme “ET” e acreditamos que nossas bicicletas voam.
Palhaço que canta? Palhaços que cantam? Quem será que foi o palhaço que transformou o palhaço num tom pejorativo? A iluminação e a acústica são detalhes, eles vão melhorar. Aquelas criaturas são do aprendizado, não da arrogância. Isso é visível mesmo quando acabamos de conhecê-los. Estão abertos as mudanças, ainda vão surpreender muita gente.
Minha amiga me agradeceu o convite, eu preciso agradecer à trupe. Foi como se eu tivesse ido a uma festa. Uma festa boa, com um belo DVD de lembrança, quase tão boa quanto uma festa de criança.
Cheguei em casa, liguei para o meu irmão que andava desistindo da música e pedi que ele viesse ver o DVD comigo. Uma tentativa irmã de dizer a ele que sonhos são realizáveis e que ignorar nossos talentos é o nosso grande pecado. Ligamos a TV, o DVD, dei play e, alguns minutos depois, ele me disse:
– Ale, a gente conheceu esse cara no sarau do KVA! Você não lembra?
Essa história do sarau do KVA aconteceu há anos… O KVA era um lugar aqui em São Paulo onde uma garotada se reunia para recitar poesias, cantar e fazer magia. Deu uma explosão na minha memória. Fui uma única vez e, daquele encontro, lembro da minha revolta por não ter uma vida que me permitisse estar ali naquele momento. Lembro de ter saído de lá pedindo a deus que minha vida voltasse a ser minha, que um dia eu pudesse voltar a ser eu mesma e pudesse de, alguma forma, estar mais próxima de vozes que se parecessem com a minha. Eram tempos difíceis e eu não comecei esse texto para falar deles, mas foi muito bom ver que hoje o que eu digo é o que eu faço e que reencontrei o sarau mágico que um dia me fez voltar a acreditar em renovações e no futuro. Como diria Fernando, que os dispostos continuem a se atrair.
www.oteatromagico.mus.br



Postado por:Alê Félix
06/10/2008
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